Wednesday, February 20, 2008

Um Olhar Mil Abismos





ÚLTIMO DIA

Abri bem os olhos e vi-me frente a um espelho enorme. Fiquei impressionada com a imagem que nele se reflectia. Os anos tinham passado, sem deixar grandes estragos, no entanto, a cara e o corpo nú, que insistiam em ser os meus, pareciam uma mera assombração de como ainda me recordava de mim própria. Uma miúda alegre, de formas generosa.

Como é que me deixara degradar ou desaparecer até àquele ponto de desistência física? Não suportei durante muito tempo aquela mulher que se esforçava por me fazer acreditar que era eu. Sentia-me como uma nuvem de fumo. Como se o meu corpo se estivesse a esvair, aos poucos, na atmosfera. Lembrava-me aquelas argolas de fumo que fazia com o cigarro aos 16 anos, para impressionar os rapazes e fazer inveja às minhas amigas. Começaram por ser argolas de principiante, desengonçadas e sem formas muito bem definidas, com o tempo e o treino transformaram-se numas argolas cheias, de formas generosas e bem delineadas mas, no fim, acabavam sempre por se esfumar no ar, sem que pudesse fazer nada para as conservar. Assim estava eu, a desvanecer-me, suavemente, a fundir-me com a natureza. E isso nada tinha a ver com a idade.

Custava-me sustentar o olhar daquela personagem reflectida no espelho. A certa altura tornou-se-me insuportável encarar aquela imagem desconhecida que insistia em imitar todos os meus movimentos e em absorver todas as minhas dúvidas.

Baixei os olhos, sem, no entanto, admitir que me rendia à evidência da minha degradação, e reparei que aos meus pés, jazia uma fotografia. Estava de cara para baixo, pelo que tive de me baixar para a apanhar. Virei-a para mim. Duas caras sorriam, felizes, encostadas uma à outra, em jeito de cumplicidade, dois pares de olhos observavam-me, através de um passado que não consegui situar temporalmente, tal o peso brutal e a tristeza que me tomaram o peito. Demorei algum tempo a conseguir identificar aquelas duas pessoas e gastei o resto de esperança que ainda havia dentro mim a tentá-lo. Quis ignorá-las. Mas, de repente, toda a minha vida começou a decorrer à minha frente, como um flash, a ferir-me os olhos. E então, não consegui mais esconder-te em mim e lembrei-me de ti. E a dor foi maior do que qualquer ser humano podia suportar. Toquei no rosto da mulher que me sorria, sonhadora e feliz, e tentei encontrá-la na minha cara e dentro de mim própria. Acariciei o teu rosto que olhava para mim, sonhador e feliz, tentei capturar o teu sorriso e alcançar o brilho do teu olhar. Fechei os olhos para melhor te sentir e quando os abri tu já lá não estavas.

E, então desisti de tudo, deitei no chão o meu corpo dorido, e encolhi-me como quem se quer proteger do mundo, com as pernas bem encostadas ao peito e os ossos salientes dos joelhos a tocar-me o queixo.

Pousei a cara em cima do teu espaço vazio na fotografia e ali fiquei, à tua espera…

De Maria Teresa Loureiro

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