Tuesday, March 27, 2007

04-09-2006

centenas de homens pastoreavam latas-de-conserva dispersas pela planície, o sol era uma pústula a apodrecer no céu; ao entardecer, os homens recolhiam pacientemente as latas-de-conserva, a cada um tinha sido confiado para que guardasse um número previamente determinado de latas. à noite chegavam os músicos, os cantores, os truões e as bailarinas, os homens reuniam-se num círculo à volta dos recém-chegados, numa leve dança até três voltas sem deixarem de ser o mesmo lugar no espaço. a mais nova das bailarinas, que os chamava, tinha extensões metálicas nos seios e guardava no interior de uma pequena mala de viagem uma floresta inventada num apartamento de uma grande cidade, e quando ela abria a mala podia ouvir-se o murmúrio de concha dos carros e das muitas vozes a circunscrever a floresta-de-vasos.
a mulher dizia
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- sei que vai chover, porque vejo uma borboleta ramificar-se continuamente.
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no final do espectáculo os homens deixavam nas mãos das mulheres que dançavam parte das latas-de-conserva que tinham trazido, e iam-se embora dissolvendo-se na substância líquida da noite

Monday, March 26, 2007

Heterotopia

no sonho de hoje estou de pé no corredor de uma casa vazia, de mim desgarra-se, como uma projecção tridimensional, um homem que eu interpelo mas não me responde. julgo ver sair pela minha boca uma cauda que está presa ao fundo das costas do homem, que percorre o corredor na direcção da velha e do pombo e dos patos. só agora dou conta de que o homem é uma figuração do diabo com feições de velho mestre de filosofia, que por mim passa e de mim se afasta. vivemos os dois numa casa que recordo ser muito grande, como um templo onde se reza a um deus astuto e grave, a um pai. aí peço uma benesse. as minhas últimas palavras, são só as minhas últimas palavras, nada revelam, e não querem nem saberiam ser a síntese de todo um saber, quanto muito, dizem de como andei disperso, abolido, confuso.
o pombo deve ter uma das patas partidas, encaracola-se ao contacto com o tampo da mesa forrado a linóleo. as penas parecem escamas, negras e cinzentas, sobrepostas umas sobre as outras como o telhado de uma casa.
a velha senhora que observo à horas do fundo do corredor, fala sozinha, diz uma ladainha de pequenas frases antigas.
os patos parecem nadar nos vidros da janela - pequenos bonecos manipulados através de varetas que lhes atravessam o corpo - representam histórias improvisadas, divertidas e pitorescas.
vá minha atenção, dividida entre os pássaros e os lábios e o homem, diz-me como se renasce dos sonhos. diz-me onde encontrar a força para ir para além das perguntas que eles colocam.

Sunday, March 25, 2007

Derivações VIII

um jogo a partir de algumas crónicas de António Lobo Antunes.
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vi pinheiros a correrem no quintal
e mochos voando contra as mãos quase felizes das árvores,
que à noite ladram como os cães
à pele das nuvens.
latidos a tecer o Outono
como o trabalho paciente do mar a magoar as mãos;
um murmúrio antiquíssimo
e eu quase feliz a construir nuvens,
pois de qualquer nuvem podemos retirar o necessário para

habitar a Terra,
eu a voltar as páginas num ruído de pombos
de mandris,
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vozes sem corpo – caravelas de fumo navegando Setembro inteiro
até ao mar.

Saturday, March 24, 2007

Derivações VII

a partir do texto Falatório do Ruzante de Volta da Guerra.

sai ofegante do fundo e avança até ao proscénio,
vem lazarento e sujo.
olha à sua volta enxugando o suor,
deita fora as solas das botas, uma de cada vez.
olha uma vez mais à sua volta e tira rapidamente da sacola
um naco de pão,
dá-lhe uma dentada e com a boca cheia
olha para a figura que vem surgindo.
descendo grave e suspiroso,
o Batido da Vida
vem impressionado e aborrecido,
e depois de uma pausa, olha à sua volta
interrompendo a pausa de Ruzante
que agarra qualquer coisa debaixo do capote, com dois dedos,
o indicador e o outro.
o Batido da Vida, depois de uma pausa trocista,
amigavelmente
com pena
põe-se em posição de corrida, ligeiramente soerguido
.................................. sobre a ponta de um pé sarcástico,
humilhado,
depois de uma pausa,
reanimado, receoso,
olha-o com comiseração
olha-o calmo Ruzante,
que entendendo-o superior
agita ameaçadoramente o pau,
agita o pau correndo para o fundo,
voltando-se para olhar, grita, pausa breve.
uma outra figura passa indiferente aos gritos festivos de Ruzante,
reage apenas voltando a cabeça.
o tom da resposta dela é gelado e cheio de desprezo,
com um gesto amigável diz,

- humilhada, olhando-te com desprezo de alto a baixo,
mantive-me afastada da discussão, mas entro agora na conversa,
oh Ruzante!

sinaliza o arranhão na cara de Ruzante.
este, explodindo,
ripostando de ricochete,
de novo humilhado e furioso,
agarra-a por um braço e tenta arrastá-la,
ela grita, desenvencilhado-se.
ele arrastando-a novamente com sarcasmo,
e ela que se conseguiu safar,
corre para o seu Rufia, gritando.
Rufia aproxima-se, enfrenta Ruzante e dá-lhe umas punhadas,
Ruzante deixa-se logo cair sem esboçar a mínima defesa.
Batido da Vida encosta-se a observar.
Rufia dá mais umas punhadas a Ruzante
e depois agarra a puta por um braço,
e ela que assistiu impassível à cena, Rufia afasta-se ameaçador.
longa pausa.
Ruzante soergue ligeiramente a cabeça,
verifica que os dois já se afastaram e diz num fio de voz
levantando mais a cabeça
aparvalhado
reanimado

- olha o atónito!

ajudado pelo Batido da Vida, Ruzante põe-se em pé com dificuldade,
apanha o pau que deixara dependurado da braguilha.
cantarolando umas palavras e rindo forçadamente
senta-se à parte e diz

- Batido da Vida observa-me a menear o pau.
.
ri cada vez mais alto Ruzante, o sátiro.

A SAGA DO PILAS III

Recordações de uma mulher à beira de parir.
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Nos últimos dois anos, o Marcelino dera para se meter nos copos e na “má-vida” todas as santas noites. Invariavelmente, entrava em casa, nos dias em que o fazia, a desoras e, por vezes, chegava ao ponto infeliz de nem ter bem a certeza do local onde se encontrava, ou, até, de como se chamava.

A maioria da vezes aparece-me em casa num tal estado que nem sei o que fazer com ele. Nessas ocasiões só me apetece é deixá-lo a roncar na escada. Nem sei como é que ele encontra o caminho para casa, deve dar-lhe o cheiro da roupa lavada com certeza, já que, por vezes, nem o nome é capaz de articular. Realmente, como é que pode sequer desejar, ou sequer pensar, cumprir a sua obrigação de marido e espevitar o corpo o suficiente para me despertar algum interesse sexual. É verdade que, habitualmente, a vontade já não é lá muita. Mas também com aquele cheiro a álcool, qual seria a mulher disposta a aturá-lo?

Nas noites mais sombrias e complicadas, em que Maria Adelaide se sentia mais vulnerável e carente, acabava por aceder aos seus sentimentos, que protegiam, ainda, alguma da paixão do início da relação. Ajudava-o a despir-se, lavava-lhe os dentes, deitava-o, cuidadosamente na cama como uma esposa dedicada. Estendia-se a seu lado e descansava a cabeça sobre o seu peito macio, murmurando palavras carinhosas e apaixonadas, plagiadas de um passado longínquo em que tinham tido um sentido muito profundo. Quase no mesmo segundo em que ela acabava de as proferir, o Marcelino, estoirado de tanto álcool e divertimento, adormecia a meio de frases atabalhoadas e incoerentes, pronunciadas com alguma dificuldade, em jeito de desculpa, só para ela as ouvir, deixando transparecer um sorriso sonhador e infantil nos lábios. Nessas noites tudo parecia ser ainda possível, até a própria vida. Era como se tudo à volta deles, de repente, se transformasse num sonho fantástico e o mundo onde viviam passasse a ser uma ilha perdida no meio de lado nenhum. Onde só os dois existiam. Durante uns minutos, ela permitia-se, e esforçava-se, navegar nessa ilusão, na esperança de que, se fechasse bem os olhos e desejasse com muita força, a ilusão se tornaria realidade.


Sendo aquelas os únicos momentos de intimidade que conseguia partilhar com o marido, Maria Adelaide ganhara o vício de o observavar longamente. E do fundo do seu coração, ainda lhe chegavam espasmos escaldantes do passado, tornados dolorosos no presente, ao ponto de o desejar, com a mesma intensidade de quando o conhecera. Todo o seu corpo era invadido por uma onda de calor que a punha louca de desejo. Fechava os olhos, na tentativa de conter o fluxo de paixão que a envolvia e a forçava a aninhar-se junto àquele corpo. Nessas noites, bastava-lhe poder olhar para o mar profundo dos olhos dele para todo o seu ser vibrar e quase rebentar de desejo.

Apesar de todo o fluxo de desejos e sentimentos doces e esperançosos que trespassavam a memória e o peito de Maria Adelaide, a sua necessidade de se envolver com outro corpo e a sua vontade de amar não resistiam à respiração pesada do Marcelino, a cheirar a whisky, e o corpo a traí-lo com o odor intenso de perfumes caros que lhe eram desconhecidos. E toda a magia da noite se desvanecia numa nuvem de poluição.

Passada essa primeira fase de confusão dos sentidos, caía na dura realidade. Antes de mais tinha de o obrigar a deitar-se de lado, de forma a evitar que ele sufocasse (caso vomitasse) e para tentar que não roncasse com tanta violência. Num ápice o sonho erótico transformava-se no seu pior pesadelo: quando o Marcelino vomitava na cama ou no chão do quarto, antes de se conseguir arrastar até à casa-de-banho e enfiar a cabeça na sanita.

Mas, sem que ela própria percebesse bem porquê, foi ficando presa àquela existência castrada, como uma fiel cumpridora das promessas, ditas sagradas, mas já sem grande sentido no ambiente hostil em que habitava. Tal como prometera a si própria no dia do casamento: o Marcelino iria ser, quase seguramente, o homem, mesmo que ausente, que a acompanharia durante toda a sua passagem por este mundo. Maria Adelaide orgulhava-se, e ao mesmo tempo revoltava-se consigo própria, por ser tão fiel aos juramentos íntimos que fizera nesse dia. Por muita mágoa a que fosse sujeita, teria de permanecer de pedra e cal na vida daquele homem que era o seu, firme como uma mulher de armas cujo objectivo máximo na vida é honrar os seus compromissos. Nos dias mais negros em que se punha a deitar contas à vida, acabava sempre por se consolar ao acalentar a esperança da existência de uma outra vida, numa outra dimensão, talvez para além da morte. Aí sim, ela garantira a si própria que iria ser uma mulher feliz e, sobretudo, profundamente amada.

Com o correr dos dias, dos meses e dos anos foi-se sentindo cada vez mais marginal ao contexto
do dia a dia. Os princípios morais que lhe sido incutidos pareciam ter ficado perdidos, a quilómetros de distância. Nada na sua vida se estava a processar como seria suposto, tendo em conta as regras de conduta que lhe tinham sido incutidas com tanta rigidez. Maria Adelaide sentia-se cada vez mais baralhada e perdida dentro de si própria, sem compreender bem os chamamentos dos seus próprios sentidos. E foi assim que, sem disso ter plena consciência, acumulou, a pouco e pouco, frustrações interiores e necessidades fisiológicas que ela nem compreendia bem. Para não piorar a sensação de caos que a dominava, evitava pensar, e sentir, nas falhas emocionais que a trituravam impiedosas. A vontade de ser possuída por um homem, fosse ele qual fosse, já que o seu era um alegre valdevino, sempre em parte incerta, era tal que rapidamente atingiu o desespero. Esse desespero ansioso dava-lhe cabo da cabeça, pois, chocava-a e, ao mesmo tempo, assustava-a. Nunca pensara ser susceptível a esse tipo de fraquezas físicas. Até porque tinha de admitir não ser especial apreciadora de sexo. Gostava do Marcelino desde que o vira pela primeira vez e, de certa forma, desejava-o ainda com um furor semelhante, mas tudo era relativo: nunca fora dada a exteriorizar as suas vontades e desejos íntimos, bem pelo contrário, sempre se habituara a disfarçar as sensações mais fortes. Como dizia a sua mãe: “Mulher que não mostra o que sente só pode ser filha de boa gente”.

Thursday, March 22, 2007

Derivações VI

a partir do texto Nenhum lugar à minha espera de Alice Vieira.

a verdade é eu estar hoje tão cheia de ti,
a verdade é este cansaço
que nunca mais teve o tamanho dos teus braços.
não sabia que ias partir
e pensava ter muito tempo para te dizer muitas coisas.
foram muitas as justificações,
e todas tinham o ar sério das grandes decisões irremediáveis,
deixando-me a casa enorme,
que me está larga como um vestido emprestado.
é então assim que se morre - resignação estúpida
de todas as coisas sem remédio.
hei-de-te escrever uma carta que ninguém vai ler.
de súbito
tenho a sensação de que é a primeira vez que aqui estou,
e tivesse corrido muito, e no fim,
não houvesse nenhum lugar à minha espera.

Wednesday, March 21, 2007

Derivações V

a partir do texto O Auto de El-Rei Seleuco de Júlio Dantas.

uns embuçadetes quiseram entrar à força
e deram umas punhadas na cabeça do Anjo,
rasgaram meia-calça ao Ermitão.
e agora, diz o Anjo, não há-de entrar
até lhe não darem uma cabeça nova,
nem o Ermitão
até lhe não darem uma estopa na calça,
pedem as outras figuras uns alfinetes
para toucarem um escudeiro.
direi a vossas mercês a suma da obra,
ela é toda para rir, do cabo à ponta.
primeiramente quinze donzelas
que vão fugidas da casa de seus pais,
atrás delas oito mundanos cantando,
muito para ver.
uns poucos de parvos semeados pelo palco,
e de tudo isto nascerá muito mantimento ao riso.
e nisto fenecerá o Auto, com música de chocalho e buzinas,
Cupido vem dar a uma alfeloeira,
a quem quer muito bem.

Tuesday, March 20, 2007

A SAGA DO PILAS II

A pedido de várias famílias romenas a residir em Portugal publica-se, à pressa, o segundo fascículo desta saga. Agradecemos à tradutora MTL a disponibilidade para traduzir a íntrincada prosa da LMT.
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Embora o som do televisor pairasse ao fundo, iam-me chegando algumas frases que me iam dando uma ideia do que estava a ser transmitido. Quando me apercebi do assunto que estava a ser tratado no tal programa da televisão as minhas orelhas arrebitaram. Tentei aproveitar os poucos intervalos de silêncio que surgiam no meio do discurso sonoro e excitado da Maria Rosa, (ocasiões que ela aproveitava para suspirar e dar fungadelas ridículas), para lançar o rabinho do olho para o meu televisor, já bem velho e gasto, e ouvir o que o locutor se esforçava por me comunicar e, de algum modo, aconselhar. A voz quente e insinuante do homem defendia que, a partir de dada altura do envolvimento erótico, é praticamente impossível, fisicamente falando, voltar atrás, tal o êxtase escaldante e a semi-inconsciência em que as pessoas mergulham. No monitor, começaram por se ver as silhuetas de um homem e de uma mulher, particularmente atraentes que se beijavam. A cena continuou, cada vez mais quente. A certa altura, quando o desejo começou a transformar-se numa febre contagiosa que parecia queimar, a imagem daqueles dois seres, cada vez mais envolvidos e entrelaçados um no outro, passou, gradualmente, de real e carnal a uma imagem tipo fotográfica, a negativo. Era incrível: conseguia-se identificar as diferentes alterações de temperatura que as diversas zonas do corpo sofriam, através da alteração das tonalidades do cinzento. Por fim, e já no auge do delírio, os tons mais escuros, indicadores do nível de resposta fisiológica ao desejo, tornaram-se de tal forma intensos que, apesar da cena se passar a preto e branco, a minha imaginação colorida fez-me corar violentamente, como se fosse a protagonista principal do programa.

Agora que penso naquele programa, com calma e descontracção, sempre gostaria de saber como é que um programa tão ousado e escandaloso terá conseguido passar pela censura. Cá para mim o censor, a meio da cena, começou a sonhar acordado e, no meio de todo esse delírio, não teve a coragem de vetar o programa, ou então, não quis perder a oportunidade de o ver novamente, talvez bem acompanhado. Não é que se visse alguma parte do corpo mais íntima ou alguma cena menos decente, até porque os corpos sendo reproduzidos a preto e branco, não têm a mesma carga erótica, nem conseguem atingir o mesmo tipo de envolvimento por parte do imaginário dos diferentes telespectadores.

Mas, feliz ou infelizmente, Maria Adelaide não teve a oportunidade de compreender a dimensão científica e muito real do que estava a tentar ver e ouvir. Só conseguiu vislumbrar algumas das cenas sensuais que, na altura, lhe pareceram deveras interessantes. No entanto, a curiosidade que as imagens lhe despertaram foi de tal forma aguçada que a fizeram sentir-se muito frustrada por não conseguir apreender a totalidade da mensagem implícita no programa. Aliás, o tema poderia ter sido dedicado especialmente a ela. Mal ela sabia que, num futuro próximo, aquelas imagens viriam a transformar-se num material de pesquisa, essencial ao arquivo da sua memória.

Os seus pensamentos irromperam novamente, desta vez mais amargos, sem que os conseguisse dominar:

Resumindo, agora estou metida num bom sarilho. A chatice é que esta é uma daquelas situações das quais não posso fugir, nem mesmo deixar que me passe ao lado, como quem não quer a coisa. Um filho é, supostamente, para nós, mães, acompanharmos e aturarmos a maior parte das nossas vidas, enquanto ele nos deixar, claro está!

Isto de ser mãe tão a despropósito nem seria muito terrível se não fosse o clima lá por casa. Essa é que é a verdadeira tristeza da minha história: a existência, sob o mesmo tecto, das duas pestes “adoráveis”, filhas do Marcelino e da ex-galdéria com quem ele teve um caso fugaz aos 24 anos. O raio das miúdas devem mesmo sair à mãezinha: caprichosas, egoístas e mal-educadas. Isto para não falar na mania das grandezas e das belezuras. Ambas estão convencidas que nasceram para serem “Cindys”. E para tornar as coisas ainda piores: gémeas, iguaizinhas como duas gotas de água. Não tivessem nascido agarradinhas pelo dedo mindinho. É exasperante, nunca sei bem com qual delas estou a falar, ou melhor a monologar, já que fazem sempre que não ouvem.

Isto não está nada fácil: madrasta detestada pelas duas e, como se já não me bastasse, a partir de hoje, ainda vou ter de me preocupar, permanentemente, com este miúdo, ou miúda: limpar-lhe a ranhoca do nariz, mudar-lhe as fraldas, e tudo o resto que é suposto uma mãe
fazer.

Maria Adelaide tentava, em vão, não se auto-deprimir em demasia ao pensar na sua vida e no Marcelino. Além de ser um marido que não servia de ajuda para nada, (só para lhe dar mais trabalho, nem que fosse a queimar a memória quando pensava mal dele), ainda achava ser um dos direitos óbvios de qualquer macho que se prezasse possuir um espaço privilegiado neste mundo. Para tal, bastava ter nascido com uma pila entre as pernas. Na sua opinião, o mundo sempre pertencera aos homens e continuava a pertencer-lhes, o que não deixava de ser curioso, já que era, praticamente, só a sua mulher que tomava conta do negócio de família. Ele limitava-se a aparecer, para verificar, tostão a tostão, as contas e a desaparecer, logo de seguida, satisfeito por ter mais dinheiro para estoirar com as suas amantes. E de preferência com a ajuda dos amigos e das mulheres que o rodeavam.

Excluindo o facto da situação, só por si, ser algo desagradável, e consideravelmente dolorosa, a verdade é que enquanto esteve ali aos ais, discreta, instalada na desconfortável posição de pernas abertas, teve tempo para pensar, repensar e divagar sobre a sua sina:

Para tudo acabar em beleza, só me falta mesmo o puto sair mulato, de cabelos encarapinhados ou de olhos pretos. Se isso acontecer é que o caldo vai ficar, certamente, entornado.

Numa eventualidade daquelas, até o distraído do Marcelino iria desconfiar. Em caso de dúvida, se já tivesse esquecido de como era, bastava-lhe consultar um espelho, para verificar que o seu reflexo devolvia-lhe um homem de pele clara, quase deslavada, olhos bem azuis, tal como os de Maria Adelaide, e cabelos escorridos, também claros, quase loiro platinado. Isto, não considerando as entradas que iam avançando, sem dó nem piedade, para a calvice. Os anos iam passando, impiedosos. Embora a realidade lhe devolvesse uma imagem de homem adulto, já bem maduro, o Marcelino continuava a levar a sua vidinha como sempre: flauteando e divertindo-se, sem se coibir de nada. Gastava tudo o que tinha consigo próprio, sem se preocupar com mais ninguém. A sua noção de família era, no mínimo, peculiar: existia porque tinha de existir, como uma instituição. A sua função era estar em casa, tipo porto de abrigo, para o que desse e viesse. Um ponto fixo de partida e de chegada. Nada de muito dramático nem complicado, já que nem lhe passava pela cabeça que a podia perder.

Apesar de todas as suas faltas de atenção e de presença física, Maria Adelaide não conseguia libertar-se daquele homem, havia qualquer coisa nele que, desde sempre, a deixava suspensa e dependente.

E pensar que ele, em tempos, foi considerado o maior garanhão do bairro... Ainda me lembro quando o conheci: um portento de macho apetecível. Não descansei enquanto não encontrei a Maria Luísa para lhe confidenciar que tinha encontrado o homem com quem queria casar. Só nunca pensei que ele também estivesse interessado em mim: eu não passava de uma miúda muito tímida e inexperiente. Mal sabia eu o putanheiro em que ele se ia transformar, à conta dos exemplos maravilhosos do pai, com certeza. Só me custa compreender como é que se foi tornar idêntico ao progenitor? Sobretudo, tendo assistido a cenas vergonhosas, de maus tratos, físicos e morais, sofridos pela sua mãe. Se eu fosse esperta tinha era ficado quietinha no meu lugar. A mão da minha mãe bem me avisou com as frequentes estaladas que me deu.

E aqui estou eu nesta vergonhosa realidade: sempre gostava de poder confirmar qual dos dois é pai do meu filho. Não é por nada, até porque em relação a ambos, venha o diabo e escolha... Sempre tive olho para os homens, sim, senhor! Coitada da minha mãe se fosse viva. E coitada de mim que era bem capaz de levar uma tareia daquelas.

O que mais a incomodava e roia naquele momento era ter de admitir a si própria que não tinha a certeza de quem era o pai genético do miúdo: se o Marcelino, ou o Camilo. Mas, no meio daquela história toda, o mais preocupante era o facto, por demais evidente, do Camilo ser mulato. Pensando bem, o marido acabava por ser o progenitor menos provável, nunca estava em casa e, quando estava, a figura não era das mais animadoras ou atraentes: barba de dois dias, cabelos emaranhados...

Felizmente, e a acreditar no que diziam as revistas que costumava ler quando ia ao cabeleireiro lá do bairro: os bebés saíam sempre com a pele clara, só com o tempo é que a pele ia escurecendo. Mesmo assim, a Maria Adelaide maldizia-se pela sua estupidez e imoralidade. Começava a sentir necessidade de se confessar, mas tinha vergonha do padre. O homem já a conhecia desde miúda. No mínimo, ia ficar chocado.

Moída ou não pelo arrependimento, tenho a certeza de, pelo menos, duas coisas: primeiro o bébé vai nascer e segundo, o Marcelino é que tem de assinar o registo da criança, dê por onde der. O que é que dirão os meus sogros se tiverem um neto mulato? Credo! Nem quero pensar. Estaria perdida. Se eles agora já não me gramam, imagino o que seria descobrirem que a mulher do filho o tinha enganado e, ainda por cima, com um mulato. O resultado seria catastrófico: a miséria moral. Isto para não pensar no pobre do padre Vitorino. Felizmente, os padres não conseguem ler os pensamentos, se o fizessem dava-lhes uma coisa má. Havia de arranjar maneira para nunca mais me deixar sair de casa se não para ir à igreja rezar e pedir perdão a Deus pela minha cabeça pecaminosa. E isto não advinhando o desprezo social a que, com certeza, ficaria votada pelos santos pecadores que me rodeiam. Meu Deus, por favor, não me castigues de forma tão dura. Tenho plena consciência de que pequei e se o arrependimento matasse, já tinha caído fulminada... Eu sei que, mais tarde ou mais cedo, vou pagar por esta folha conspurcada do diário da minha conduta cá na Terra. É a chamada justiça divina, e dela nunca me livrei, bem pelo contrário: às vezes parece que o castigo que sofro é bem mais pesado do que o pecado cometido. O mais estranho e desesperante neste meu mundo, é sentir que os que me rodeiam, e têm atitudes francamente esgoístas e cruéis, nunca pagam pelas suas maldades. Devem ser protegidos por um diabrete maligno qualquer... Sorte a deles.

Maria Adelaide estava à beira de uma crise de pânico. Os seus pensamentos começavam a perder qualquer réstia de racionalidade. Tentou orientar a sua cabeça para assuntos menos intelectualizados. Esforço que se revelou inútil, pois não conseguiu abstrair-se da dura e crua realidade. Na esperança de se distrair com uma futilidade, recordou as aulas de ginática pré-parto onde sempre se sentira consideravelmente ridícula e experimentou pôr em prática a respiração, um pouco obscena, e sobretudo muito hilariante, que lhe tinham ensinado. O importante era conseguir, a todo o custo, fazer abrandar aquelas dores horrorosas que teimavam em colar-se-lhe à barriga e aos rins, nem que para isso se tivesse de sentir a mulher mais ridícula ao cimo da Terra. Concentrou-se na respiração e, aos poucos, lá foi conseguindo obter alguns resultados satisfatórios.

Quando se sentiu capaz de usufruir do ligeiro abrandamento das dores terríveis, decidiu tentar entreter a imaginação com algo de mais substancial. Não muito inteligentemente, optou por voltar a pensar no marido. Embora o tema não fosse brilhante, nem sequer animador ou consolador, parecia ter o condão de a distrair de si própria. À medida que as frustrações conjugais ganhavam terreno dentro da sua mente, foi conseguindo esquecer-se dos preparos desconfortáveis em que se encontrava e do que a esperava nos minutos e horas seguintes.

Derivações IV

a partir do texto O Reino Circular de Mário Braga.

na forma directa da minha vontade
conservo absoluto o translato das memórias do cronista - centro geométrico da crónica.
os povos estrangeiros designavam este reino de circular,
para ali fora levado, num elefante branco,
sob um pálio de cetim, um céu desdobrável - um pano azul tecido
.......................................................................................... pelos arcanjos
que o tempo esburacara.
instalara-se na torre um óculo giratório de lentes poderosas
que permitia ver todos os recantos,
um enorme olho no pergaminho das crónicas
sob o toldo furado do céu que coava uma luz eterna,
até os insectos e os pólenes pareciam comungar da circularidade.
circular a consciência
circular a cidade equidistante do centro.
nos pauis nenúnfares e folhas de árvore apodreciam,
para ser o paraíso
só lhe faltava olhos que fitassem sem medo as coisas
por entre o surdo fragor das patas de muitos cavalos, mas,
ou porque a cidade fosse infinita ou andasse sempre às voltas,
nunca se alcançava o limite,
nem que nisso se consumisse uma vida.
do cronista lembro os gestos
por entre os juncos e o azul do céu.

Monday, March 19, 2007

Derivações III

a partir do texto Prece em Ó de João Rosado.

ó deus
há menos gente a sorrir que a comer,
ó deus
não permitas tanta solicitude nos anúncios da Marie Claire,
ó deus
tu que és uma mancha perpétua num quarto escuro
........................................... cheio de solidão e aforismos,
permite que a poesia seja uma aventura doméstica.
ó deus
provei o veneno do sexo desta mulher e gostei,
ó deus
que pensamento teu será hoje capaz de modificar este templo
....................................................................................... em ruínas?
ó deus
ensina-me a partir o chocolate
mas dá-me um pretexto para o comer,
ó deus
das pernas desta cadeira faz flautas e apitos,
ó deus
promete-me uma viagem de Maio a Antuérpia,
e perdoa-me, ó deus, não saber rezar como me ensinaram.

Saturday, March 17, 2007

RETRATO DE LMT


A SAGA DO PILAS I

Romance em fascículos, da escritora LMT, traduzido do romeno por MTL.

Sai aos sábados.

O Pilas cai neste mundo

O Pilas nasceu sob o auspicioso signo do Touro, símbolo de vitalidade e de sensualidade, tão em cima da passagem de 10 para 11 de Maio que teria sido muito difícil estabelecer a data exacta do seu nascimento se a mãe não fosse supersticiosa relativamente aos número pares, foi essa a razão que a levou a lutar afincadamente pelo dia 11 aquando do registo da data de nascimento. Nessa noite morna, mas pingona, Maria Albertina teve de estar durante três longas e dolorosas horas semi-deitada, de pernas abertas, até o moroso processo de expulsão do seu rebento de quatro quilos e trezentas gramas estar terminado. Ao fim desse tempo lá o conseguiram tirar, pelos pés, pronto para o que desse e viesse.
Para Maria Albertina, o acontecimento de ser mãe em vez de a envolver no tradicional estado de graça prolongado, resumia-se a horas de arrependimento e martírio que teria de ir tratando de esquecer ao longo da sua vida. Devia ter adivinhado que ia ser um dia insuportável; acordei mal humorada e ainda não me passou. Não compreendo como é que há quem diga que este é o segundo dia mais feliz na vida de uma mulher logo a seguir ao dia do casamento, para além disso o meu dia de casamento não serve de exemplo, comecei a lua de mel a ver a Guerra das Estrelas.
Agora que tudo acabara sentia-se impaciente e revoltada com ela própria, não só por causa do incómodo físico que subsistia, sabia que era tarde demais para se martirizar com o assunto, mas desprezava-se por se ter deixado engravidar como uma adolescente ingénua e pudica; tudo culpa de um mísero momento pouco original em que a carne fraquejara e abafara a razão com os seus gemidos e estremeções. A irritação ia engordando à medida que tinha a cabeça mais liberta para pensamentos excessivos e acabou por se enterrar num delírio aparvalhado que lhe despoletou sonhos pouco cristãos em que se via a dar bofetadas na vizinha Maria Rosa e a apertar o pescoço grosso do seu marido Marcelino. De nada lhe valeram os ensinamentos, incutidos pela sua mãe à custa de estaladas na boca, de abnegação nas contrariedades e contenção na sua tendência natural para a blasfémia e para o palavrão; a fúria passou anos luz à frente da recordação do sabor da pimenta na língua e desatou a extravasar-se através de um murmúrio ácido:

Maldita a hora em que me deixei levar pelas falinhas mansas do Marcelino, estou-lhe com um ódio de morte. Dizem que é habitual as mulheres terem acessos de fúria e frustração em relação aos maridos durante os partos, no meu caso, o que sinto ultrapassa a normalidade; não se pode chamar-lhe uma mera raiva pontual, pois a vontade de o fazer sofrer é demasiado forte para passar tão depressa.
Também estou capaz de esganar a Maria Rosa. Enquanto viver, nunca mais me vou esquecer daquela sexta-feira. Raios me partam! Tinha acabado de chegar a casa e de me livrar da carteira e dos sacos que, como habitualmente, trazia na mão (sempre que chego a casa sinto-me uma feirante com trezentas mil coisas às costas) quando ouvi o som estridente da campainha da porta. Estava a compenetrar-me psicologicamente de que tinha de começar a confecção do jantar para o Marcelino (não se fosse dar o caso inédito de ele aparecer para comer) e para as suas filhinhas adoradas (não se fosse dar o caso raro de quererem jantar sem me chatear a cabeça), e lá me apareceu a Maria Rosa, oscilando, como sempre, entre o estado teatral de irritação e o da lamúria, com mais uma das suas novelas amorosas trágico-cómicas.
Chata! Desde que se mudou para o prédio em frente não me larga a porta. Como se já não fosse suficiente ter de a aturar todo o santo dia a entrar-me pela Agência dentro, nuns trajes e maquilhagens demasiado ostensivos que não me ajudam nada ao negócio, ainda tenho de a aturar dentro de casa. E logo à hora de fazer o jantar. Isto para não falar no facto do Marcelino se babar sempre que a vê.
Recordo-me vagamente da suposta desgraça da Maria Rosa nesse dia. Tinha a ver com o namorado do momento, um futebolista da 2ª divisão, casado é claro. Sei que a história metia outras mulheres (para além da oficial), o receio de uma gravidez incómoda e cenas degradantes de estalada, à mistura. Só já não tenho bem a certeza de quem bateu em quem nem porque razão, nem quem estava grávida de quem. A infeliz falava tão depressa que comia a maior parte das palavras, e dos amendoins que tinha acabado de comprar e com os quais contava compensar-me das chatices do dia, de forma que nem as consegui ouvir na totalidade e muito menos decifrar o seu sentido. Já para não referir o português que ela articulava.
Apesar da minha atenção estar dividida entre a carne que tinha posto a assar no forno e a tagarelice contínua da Maria Rosa, estou certa de que fiz todos os esforços, humanamente possíveis, para tentar compreender o que dizia e ajudá-la. Cheguei a dar-lhe alguns conselhos, supostamente avisados, o que não deixa de ser caricato vindo de mim. O que mais me revoltou naquela história foi o ter a certeza de que, naquele momento, já a minha amiga era uma das atracções principais do lendário falatório dos balneários da equipa de futebol. Mas confesso que não estava com capacidade física, e muito menos coragem moral, para a tentar levar a encarar a dura realidade desta vida. Até porque era véspera de fim-de-semana e eu, como todas as pessoas que trabalham e são minimamente normais, já só ansiava pelo dia seguinte – sábado - para poder dormir o máximo que o barulho agressivo da rua mo permitisse. Não falando no facto de já estar pelos cabelos com as maluquices da Maria Rosa. Desde que a conheço que os seus dramas começam sempre da mesma forma: numa primeira fase, um homem que surge do nada e que a faz sentir-se, durante umas horas e às vezes dias, a mulher mais fantástica e única do planeta. Na segunda fase é ela que baixa todas as defesas, deixando-se transportar e cair numa paixão avassaladora e incontrolável. A última fase e a mais triste resume-se, invariavelmente, a mais uma desilusão e a mais um desgosto, sempre considerado o mais miserável de todos, pelo menos desde o anterior.
Coitada da Maria Rosa! Lá estou eu com pena dela. No fundo, ela limita-se a ser de carne e osso e a ter sentimentos, como alguns de nós. Vive tão ansiosa por encontrar alguém com quem partilhar as noites, em primeiro lugar, e os dias que quando lhe surge um homem minimamente interessante pela frente, aí vai ela a correr de braços abertos, como se tivesse encontrado o “Príncipe Encantado”. Nem se lembra de lhe perguntar, logo à partida, se, por acaso, ele é casado.

Derivações II

a partir de textos de Ouolof, poemas mudados para português por Herberto Helder.

beijei a tua boca
faz já muitíssimo tempo aqui nesta terra
porque tu dás o limpo
o excelente
as boas coisas,
que todas se encontram sob o poder da tua mão.
houve também uma vintena de dias sem nome,
dolorosos dias,
pois chegará o tempo em que nestes dias
virá o fim do mundo.
porque és o regenerador verdadeiro
concedes o bem,
venho ver-te neste teu sítio
porque por inteiro a ti entrego
a minha vontade e o meu pensamento aqui na Terra.
qualquer homem limpo sente alegria
belo Senhor!
tanto as nuvens como as chuvas,
tanto o raio como o insecto mínimo,
tanto as aves como os outros animais, o mesmo.

Derivações I

a partir do texto A China fica ao lado e outros contos de Maria Ondina Braga.

as paredes sujas de um beco viravam para o cais,
grandes incensadores ardiam no fundo das barracas
onde as mulheres enrolavam panchões.
reflectidos na lama do cais, ao fim da tarde,
deuses vestidos de cabaias compridas
e calçados com chinelas de palha de arroz,
deuses de gestos lassos,
festejavam com os homens a deusa A-Ma,
na rua dançava um dragão.
talvez um ensaio do fim do mundo
com os adens a baloiçarem-se como eu e como os navios
na claridade que crescera da paisagem aquática
como um colar de missangas.
uma mulher que cheirava vagamente a sândalo,
a perfumes vegetais,
tinha os lábios frios
como os pés de marfim dos condutores de triciclo.
o ar denso de fumo de incenso
continha toda a velhice do mundo,
algo de sobrenatural marcava o momento,
isto porque, no regresso, fazia escuro
e surgiam no caminho os primeiros sapos do dia da ressurreição.
a mulher fumava ópio em longa horas paradas,
ou outros querendo alguém,
alguma coisa,
todos inquietos,
desvairados todos.
lembro o volume da mulher contra os vidrilhos
de bacia nas mãos,
a mulher sem palavras
na tarde sufocada de tufões
quando os outros jogavam ma-jong,
e eu entristecia cómodo
como numa gaveta.
os pés da mulher eram peixes de vidro
a boiarem à flor da água como detritos,
como os tancares no Cais Interior,
nas ondas consecutivas da sua litania de ópio.
a mulher tinha os olhos azuis
e sabia uma história de deuses que se tinham embriagado de ópio
e enlouquecido.

I KNOW NOT WHAT TOMORROW WILL BRING.


Lisboa

andei aos solavancos pelas ruas de Lisboa à procura de um amigo, um daqueles amigos que me batesse nas costas, me chamasse "meu velho" e me falasse dos filhos, do emprego, dissesse brejeirices às mulheres que passam. nem um. então pensei em vir visitar-te, porque queria ouvir contar uma história que me trouxesse de volta o sentimento de pertencer às recordações de alguém. começaria assim a história. esta noite, como o sono chegasse dificilmente, tentaste encontrar, entre os nomes evocados pela memória, um que fosse particularmente grato, de modo a coseguires adormecer com um sorriso nos lábios. a memória falhou-te, e tu adormeceste pobre, como pobre fora a tua vida. como pretendes legar o conhecimento da tua experiência, exortando que se busque no amor um refúgio que nunca nos é negado, decides-te a descrever num conto, na primeira pessoa, o teu caso pessoal e esta desencorajante sensação de quem para sempre ficou só. nesta história há um tipo miserável, andrajoso, esfaimado, e com que severidade ele expõe os seus pontos de vista; eu não posso deixar de rir, porque ao fim e ao cabo, até é ridículo ouvir um criançola, sem experiência em nenhum campo, a dizer as coisas, a torná-las feias e tristes e pesadas e inúteis. mas a verdade é que gosto de ouvir-te falar da minha solidão, que não é de ouro nem de pedras preciosas, porque não pode ser tão horrível, nem tão mesquinhamente ostentosa; e do silêncio das coisas que se contentam em existir e aos poucos apodrecem. ouvir-te falar do vagabundo é como se eu me observasse fora de mim, a tornar-me gradualmente a imagem que me apraz contemplar. foste tu que me apresentou a esta imagem, uma forma diplomática de me indicares o teu cansaço. até que um dia decidamos em perfeito acordo que as nossas aventuras passadas nada são perante a figura do amor...
o ponto de partida é, evidentemente, o essencial. de certo modo, o que eu verdadeiramente possuo é o ponto de partida. mas que importa tudo isto, se o destino é comum e a hora de chegada nada modificará? não alongo mais a história, decerto já se adivinha que não é possível dar-lhe um fim.