Monday, July 9, 2007

Dia II

Há dias em que a lucidez que me agarra não me deixa respirar.

Monday, June 25, 2007

Evasão I



Os amantes nunca se combinam bem. Um deles lança sempre a sua sombra sobre o outro e impede-o de crescer, de modo que aquele que se sente sufocado procura desesperadamente um meio de evadir-se, para poder crescer sem entraves. Não é este o drama essencial do amor?

Passado I

Os factos passados, longínquos, deformados pela memória, adquirem um realce particular porque são vistos isolados do seu contexto destacado dos pormenores que os precederam e seguiram; pormenores que destacamos e lançamos fora como sobrescritos usados.

Sunday, June 17, 2007

Dia I

Há dias em que sou uma paisagem triste sob um céu carregado.

Despedida às palavras I


As palavras vão perdendo o significado e a força que sempre tiveram na minha vida, à custa de tantas vezes as ver amarrotadas, ignoradas, em suma, mal escritas. Começam a cansar-me. Criar uma nova linguagem através das sensações, em vez de utilizar as palavras, para não as gastar. As sensações não se gastam, estão sempre a ser renovadas e são inevitáveis. Compreendemos as mensagens das imagens, mas como comunicar com as sensações? Escrever sem palavras e sem imagens seria interessante, mas como fazê-lo?
As palavras gastam-se, talvez não da mesma forma como se gastam os sabonetes ou os rebuçados, mas também de forma definitiva.
Como seria se as palavras tivessem rugas, pés de galinha, ou artroses? Seria uma artrose com artroses, uma letra coxa ou constipada; uma paixão cansada.
Com as sensações nada disso aconteceria; não existem sensações histéricas, velhas e gastas, são só sensações, e podem ser ilimitadas.

Wednesday, June 6, 2007

Há qualquer coisa ...


AMOR BRUJO

“Quando não te vejo, o meu relógio “anda” sem corda; os sapatos andam trocados, de ternura (esqueço-me de os calçar bem, de manhã), não compro tabaco, eu, que fumo locomotivamente; pardais acercam-se, entram no saco de plástico e levam-me o pão. Sem ti, sou a minha estátua.
Há um friso na minha consciência – o da mitologia católica; é como uma catedral. Bem tento prender-me a ti, para salvar-me. É inútil. Há qualquer coisa que não me dá tréguas. Não posso lutar contra um inimigo que não distingo bem, na bruma.”

De Sebastião Alba

Friday, June 1, 2007

Uma mais ao menos criança de 13 foi acusada de ter sido violada

Uma criança de 13 anos e 9 meses foi acusada de ter sido violada pelo padeiro da esquina. A criança, quase adulta aos olhos da lei foi, apanhada a ser violentada pelo padeiro que já aparentava sinais de desgaste e sofrimento dignos de pena.
Em declarações no tribunal, o padeiro queixou-se que a criança de 13 anos e 10 meses entrou na padaria para comprar uma bola de Berlim com creme às 11h00, o que desde logo lhe levantou algumas suspeitas, por ser uma hora imprópria. Ficou logo de sobreaviso. A conversa azedou quanda a criança de 13 anos e 11 meses se exaltou com o padeiro quando ele lhe deu uma festa na cabeça e uma palmada no rabo para o compensar de não ter bolas com creme. As pessoas que assistiam ficaram indignadas com a atitude da criança que obrigou o padeiro a ir à cave da padaria confirmar se na verdade o homem tinha ou não tinha bolas. Fez-se ser agarrada pelo braço e, segundo apurámos pelas palavras do padeiro, obrigou-o a "despir-lhe as calças de ganga, de marca roscof". O povo que esperava a vez para ser aviado só venceu a inércia e foi chamar o homem do talho mais próximo quando ouviu os gritos infernais da criança a incitar à violação o pobre do padeiro.
A criança, já de 14 anos a esta hora, aguarda em prisão domiciliária e ficou à guarda da mãe do padeiro que já fez constar que "a ela o fedelho não a engana" e acrescenta: - O meu filho é um santo, não é que dorme com o malandrete todas as noites? Diz que é para ele não cometer nenhuma loucura?

Wednesday, May 30, 2007

Todo o português que se preze sabe escrever!


No meu emprego existe uma pessoa que foi contratada especificamente para fazer a revisão de todos os textos produzidos pelos colegas .

Pergunto-me, para quê o dispêndio de dinheiro, se todos sabemos escrever tão bem. Somos cerca de 90 espertos que gostamos de corrigir o que enviámos para corrigir pela pessoa responsável pelas correcções. Risível, não? Seria de rir se não fosse denunciador da nossa incultura e incapacidade de ser corrigidos. Não sabemos aceitar uma crítica, nem uma correcção, somos perfeitos.

Se não nos custa admitir que não sabemos fazer uma simples conta de multiplicar por que será que temos tanta dificuldade em admitir que não sabemos escrever, pelo menos sem erros ortográficos.

Enfim, a nossa "revisora" diverte-se com a necessidade de afirmação de algumas das pessoas que a rodeiam, e às vezes sai cá cada palermice... Já diz o ditado "Albarda-se o burro à vontade do dono."

E somos todos uma grande família feliz, regressamos a casa com a noção de que somos mesmo bons: - Então, não é que corrigimos uma frase da revisora? E certamente ainda comentamos, entredentes: - Deviam era dar-me a mim o ordenado dela!

Um mimo!

Mandar os Políticos à Fava

Eis uma atitude que aplaudo. Compreendo o desespero e lamento as consequências, sofri-as, também, na pele. Pena é que não haja mais pessoas com coragem para o fazer.
Parabéns, anónimo.

Tuesday, May 29, 2007

Grande Máxima

"Não sabe nada e pensa que sabe tudo. Espera-o uma carreira política."
Já o dizia G.B. Shaw
Eu acrescentaria que o espera uma carreira política de sucesso.
Já experimentaram construir uma nota sobre o percurso profissional de um político? Sobretudo daqueles que o único trabalho que tiveram foi o de filiarem-se num Partido depois da Faculdade, do Liceu, ou mesmo da Escola Primária (Ensino Básico, actualmente).
Eis um bom desafio. Garanto-lhes que é difícil, senão impossível, mesmo com a internet como ajuda. E o mais curioso é que são eles que estão sempre nos "cargos-chave", naqueles cargos que interferem com o bem-estar dos cidadãos comuns, com a qualidade de vida dos portugueses. Normalmente, cada um detém várias dessas "posições" que lhe dão mais do que um único ordenado confortável, carro e telemóvel de primeiríssima geração, férias numa ilha tropical. Nem precisam de comprar bilhetes para os espectáculos de ballet, ópera, dança, música, pois tudo lhes é oferecido. Tudo isto é válido para família, afins e amigos.
Se soubesse o que sei hoje, a primeira coisa que tinha feito ao entrar para a Faculdade era inscrever-me num desses dois partidos políticos que têm, à vez, dançado com as cadeiras e engordado à custa do nosso desespero. Nesta altura, não estaria certamente aflita para conseguir pagar os aumentos sucessivos dos juros da casa...

Monday, May 28, 2007

Adeus à Saga do Pilas e outras histórias

Lamento informar-vos, fãs do Pilas e da sua saga, de que me fartei de tudo: do Pilas, da saga, da escrita, do dia-a-dia, em suma, deste país.
Não, não vou regressar à Roménia, país que aliás desconheço, vou mesmo partir para mais longe; adquiri um pedaço de terreno na Lua, com um dinheiro arranjado por um amigo que sempre fez vida partidária, maçónia, sei lá, um desses lóbbis que permitem aos portugueses trabalharem e vingarem em Portugal.
Estou out.
O Pilas que me perdoe. Partamos para outros terrenos.
LTM, MLT, MTL, TLM, etc.....

Sunday, May 27, 2007

Pour toi Sirob Naiv e pour tous les tois qui se sont allés

Cet Amour

Cet amour
Si violent
Si fragile
Si tendre
Si désespéré
Cet amour
Beau comme le jour
Et mauvais comme le temps
Quand le temps est mauvais
Cet amour si vrai
Cet amour si beau
Si heureux
Si joyeux
Et si dérisoire
Tremablant de peur comme un enfanto dans le noir
Et si sûr de lui
Comme un homme tranquille au milieu de la nuit
Cet amour qui faisait peur auz autres
Qui les faisait parler
Qui les faisait blêmir
Cet amour guetté
Parce que nous le guettions
Traqué blessé piétiné achevé nié oublié
Parce que nous l’avons traqué blessé piétiné nié oublié
Cet amour tout entier
Si vivant encore
Et tout ensoleillé
C’est le tien
C’est le mien
Celui qui a été
Cette chose toujours nouvelle
Qui n’a pas change
Aussi vraie qu’une plante
Aussi tremblant qu’un oiseau
Aussi chaude aussi vivante que l’été
Nous pouvons tous les deux
Aller et revenir
Nous pouvons oublier
Et puis nous rendormir
Nous réveiller souffrir vieillir
Nous endormir encore
Rêver à la mort
Nous éveiller sourir et rire
Et rajeunir
Notre amour reste là
Têtu comme une bourrique
Vivant comme la mémoire
Bête comme les regrets
Tender comme le souvenir
Froid comme le marbre
Beau comme le jour
Fragile comme un enfant
Il nous regarde en souriant
Et il nous parle sans rien dire
Et mois j’écoute en tremblant
Et je crie
Je crie pour toi
Je te supplie
Pour toi et pour nous tous ceux qui s’aiment
Et qui se sont aimé
Qui je lui crie
Pour toi pour moi pour tous les autres
Que je ne connais pas
Reste là
Là où tu étais autrefois
Reste là
Ne bouge pas
Ne t’en vas pas
Nous qui sommes aimés
Nous t’avons oublié
Toi ne nous oublie pas
Nous n’avions que toi sur la terre
Ne nous laisse pas devenir froids
Et n’importe où
Donne-nous signe de vie
Beaucoup plus tard au coin d’un bois
Dans la forêt de la mémoire
Surgis soudain
Tends-nous la main
Et sauve-nous.

Jacques Prévert
“Paroles”

Monday, May 14, 2007

A SAGA DO PILAS - A perder o fôlego e o interesse

Por seu lado, no dia do fatídico encontro, o Pilas não fazia a mais pálida ideia de quem era o Doutor Camilo com quem tinha de ir lanchar, e a bem dizer, nem lhe interessava. Vivia à farta os seus 10 anos, sentindo-se o rei da paróquia. Dadas as circunstâncias sociais e “ambientais”, o seu linguajar era bastante livre (para não dizer chocante). Assim, nem a vontade interesseira de, através da conquista do filho, reconquistar a mãe fez com que o Senhor Doutor tivesse vontade de tentar uma segunda abordagem. Até o local escolhido para o encontro parecia ter sido escolhido, a dedo, com o objectivo daquilo não resultar: a Ferrari.

Para que não restem dúvidas, eis o relato fiél dos acontecimentos do dito dia D (D de Desastre e de Desencontro): numa 5ª feira - e após muitas combinações feitas e desfeitas à última da hora, devido a todo o tipo de imprevistos - o Camilo mandou o motorista da sua digníssima esposa buscar o Pilas à escola.

Primeiríssima asneira.

O homem lá foi, calmo e disciplinado, inconsciente dos tormentos que o esperavam. Chegou às quatro e meia da tarde, em ponto. Pensava, assim, assegurar a pontualidade que era vital no seu trabalho. Aliás, estava convencido que teria tempo de sobra para chegar à Ferrari, à hora habitual do lanche do Senhor Doutor – às cinco e meia. Estacionou o carro mesmo à frente do portão da escola e ali ficou, rígido e correcto na sua farda, à espera do menino. Foi aguardando: 5, 10, 15 minutos e nada. Aos 20 minutos de espera paciente, começou a ficar nervoso com o avançar da hora, pois sabia bem como o Senhor Doutor abominava esperar. Saiu do carro para esticar as pernas, tentando descontrair-se. Receou ter baralhado a descrição do rapaz que lhe fora dada, muito por alto. Às cinco horas entrou em desespero: não sabia o que fazer.

Meu Deus! O que é que hei-de fazer à minha vida? E tinha isto de me acontecer logo com o Senhor Doutor que odeia esperar. O estupor do miúdo ainda me vai fazer perder o emprego. Mas, afinal, de quem será este puto, para merecer tantas atenções? Essa história que o Senhor Doutor tentou vender que faz dele um bom samaritano cheira-me a esturro. Só a menina Filomena é que vai numa conversa dessas. Pobre menina, sempre tão boazinha e compreensiva... . Cá para mim o miúdo é filho de uma das antigas amantes do Senhor Doutor. Nem me admirava muito que fosse filho de um descuido... . Esse doutorzeco nunca me enganou com aqueles seus ares de importante... . Credo! Mas o que é que estou para aqui a pensar? O que me interessa neste momento é encontrar o tal puto. Quero lá saber das intriguices desta gente. O resto são tretas, eles que são ricos e de famílias que se entendam.

Enquanto ia entretendo o espírito com estas cogitações, o motorista Jacinto ia avançando com o corpo, em direcção à porta de entrada do edifício da escola. Pelo caminho foi gozado pela criançada devido à sua farda aprumada: com certeza inédita naquela zona popular e simples da cidade. Encontrou um Contínuo, sentado à sua minúscula secretária no átrio de entrada, e perguntou-lhe se os alunos já tinham saído todos. O homem poisou o jornal desportivo que estava a ler sobre o tampo da mesa e, depois de o ter observado por cima dos óculos, perguntou-lhe pelo nome e idade do rapaz de quem estava à procura. O motorista abriu a boca para responder, mas só nessa altura é que se apercebeu de que nem sequer sabia qual era o nome do miúdo, só a idade – 10 anos. Corou até à raiz dos cabelos ralos, como sempre lhe acontecia quando era apanhado em falta. E maldisse a sua vida:

Merda! Não me lembro do nome do rapaz. Estou tramado. Mas que falha imperdoável. Não é que se me varreu completamente...? Será que o Doutor mo chegou a dizer?

Fez uma breve pausa nos seus pensamentos enquanto se esforçava por recordar timtim por timtim a rápida conversa matinal que tivera com o Senhor Doutor – homem sempre ocupadíssimo e apressadíssimo.

Agora me lembro: ele não me disse o nome da criança, só a idade e o facto de ele ser um bocado rebelde. O tipo também anda sempre com a pressa toda, como se estivesse atrasado. Vá-se lá saber para ir onde: não tem nada para fazer. Esta gente bem anda sempre apressada, está na moda, depois esquecem-se de tudo o que é importante. É claro que a culpa de tudo o que corre mal é sempre do mexilhão.

Lá estou eu outra vez com pensamentos que não me vão levar a lado nenhum. Afinal, onde é que andará o desgraçado do puto
?

Vendo o pretensioso motorista com o ar ausente de quem se perde dentro da própria cabeça, o Contínuo desinteressou-se dele, encolheu os ombros, e preparava-se para retomar a sua posição anterior: refastelado a ler o jornal, quando uma cena que decorria do lado de fora do portão da escola o obrigou a parar e, até, a limpar os óculos com um lenço de papel, tal a incredulidade do “filme”. No que respeita o Jacinto, lá continuava preso nas suas conjecturas e dúvidas existenciais, de tal forma que nem reparou na alteração da expressão do homem.

Para além do contínuo – que hesitava entre o ignorar, o zangar-se ou o rir às gargalhadas -, todos os alunos que brincavam no recreio e as pessoas que passavam na rua, pararam e começaram a rir, ou pelo menos a sorrir. Só nessa altura é que o motorista caiu em si e percebeu que algo de invulgar estava a acontecer nas suas costas. Virou-se, curioso e apreensivo, temendo pela “saúde” do carro da menina Filó e encaminhou-se, lesto, para a rua. Quando ia a descer o primeiro degrau da pequena escada que dividia a entrada do edifício da escola e o pátio do recreio, foi surpreendido pelas gargalhadas generalizadas e pelo espectáculo que decorria uns 50 metros à frente dos seus olhos. A surpresa foi-lhe fatal e, antes que pudesse abrir a boca de espanto ou emitir um ai, falhou o segundo degrau e estatelou-se ao comprido no chão – óculos para um lado, chapéu para outro. Escusado será relatar a risota generalizada. Incomodado pela falha ridícula, levantou-se como se tivesse molas nas pernas. Sacudiu o pó das calças vincadas, outrora impecáveis. Demorou alguns segundos na procura dos óculos e, logo depois, na procura do chapéu.

Quando, finalmente, conseguiu olhar para a cena que tinha à frente dos olhos deparou-se-lhe o seguinte espectáculo: em cima do tejadilho do carro da menina Filomena, estava um miúdo, sentado de pernas cruzadas – à chinês -, calmamente, como quem espera que algo de diferente aconteça. Com ambas as mãos, erguia um cartaz por cima da cabeça, onde se podia ler duas “palavras”– “Estou Aqi!”. O motorista, estupefacto (não tanto pelo erro ortográfico), ficou sem saber que atitude tomar.

Virgem Santíssima! Não me digam que aquele é o miúdo que vim buscar para lanchar com o Senhor Doutor. Que vergonha, e logo na Ferrari, onde a menina Filomena é tão conhecida e querida. Se ela sabe disto vai sofrer horrores. É bem capaz de ficar doente mais uma vez.

No que se refere ao Pilas, era o miúdo mais realizado do planeta. O mote central do seu dia a dia era ser o centro das atenções, sempre que pudesse e fosse da maneira que fosse. E naquele preciso momento estava a consegui-lo às mil maravilhas: toda a gente parava na rua a olhar para ele, num misto de espanto e censura. Sentia-se o maior da rua dele.

Entretanto, o desgraçado do Jacinto recuperou o sangue-frio que lhe era característico e dirigiu-se para o carro. Na verdade, e pensando com calma, até se sentiu aliviado quando viu o Pilas em cima do carro.

Pelo menos, agora já sei onde está o rapaz. O passo seguinte é convencê-lo a descer do tejadilho do carro e a instalar-se no assento traseiro, de forma a poder transportá-lo, rapidamente, até junto do Senhor Doutor.

Se o homem pensava que ia ter alguma dificuldade, depressa se descontraiu. Logo que se aproximou, o Pilas, com a graciosidade que os seus 10 anos lhe permitiam, saltou do tejadilho do automóvel e esperou que o motorista chegasse e lhe abrisse a porta (como vira fazer num filme da televisão). Após o convite do motorista, enriquecido com uma ligeira vénia, o Pilas entrou para o carro. Acomodou-se no assento de trás, parecendo um pouco desprotegido, ali sozinho e mínimo, no centro de um banco tão grande.

Ao longo de todo o percurso entre a escola (numa ponta da cidade) e a pastelaria (bem no coração da cidade), não houve entre os dois – motorista e criança - qualquer troca de palavras. Cada um se refugiou nos seus próprios pensamentos , sensações e julgamentos. De vez em quando observavam-se, mutuamente, através do espelho retrovisor. O motorista tentando manter a discrição.

Não há dúvida nenhuma de que o miúdo tem parecenças evidentes com o Senhor Doutor: o mesmo cabelo preto, muito ondulado, e feições semelhantes: traços bem desenhados, macãs do rosto suaves. E o tom de pele, também moreno. Agora, aqueles olhos grandes e azuis é que não estou a conseguir identificar... , devem vir do lado da mãe. Sempre gostava de saber quem é ela. Ora bem, o miúdo tem 10 anos, embora pareça mais velho, visto ser todo espigadote; o senhor doutor está casado com a menina Filomena há cerca de 7 anos, mas antes de casarem já namoravam – iam namorando, quando ele se lembrava dela ou não tinha mais ninguém - havia um ou dois anos... . A verdade é que este doutorzeco nunca me inspirou muita confiança: sempre o achei um interesseiro. Se o puto vier a sair a ele, vai ser cá uma bisca... . Aliás, já se viu que não é boa rês: onde é que já se viu sentar-se em cima de um carro à espera de alguém?

Bom, o melhor mesmo é concentrar-me no trânsito e apressar-me; quanto menos souber desta história, melhor. Como costumo dizer: eles que são ricos e de boas famílias que se entendam.

Por seu turno, o Pilas estava excitadíssimo com o “filme” que estava a viver: sentado num carro de luxo, a ser conduzido por um motorista todo enfarpelado, na perfeição. Olhava pela janela, na esperança de que alguém conhecido o visse passar naquele carro e o reconhecesse, ficando a morrer de inveja. Mudava de posição vezes sem conta: ora estava sentado, ora de joelhos para ver melhor, ora deitado de pernas para o ar.... Enfim, ia experimentando todas as posições possíveis e imaginárias. Mal dava pelo motorista que lhe parecia um careca trombudo e maldisposto. Ainda arriscou cruzar o olhar com o do homem uma ou duas vezes, através do espelho, mas a expressão que o recebeu foi tal que desistiu: nem foi capaz de vislumbrar o que raio estaria o homem a pensar.

O que ele pensa não deve interessar nem ao menino Jesus. Parece que engoliu um candeeiro de pé alto. Tem cá uma figura mais esquisita, como se nem fosse humano: se calhar é meio homem, meio extraterrestre. Que se lixe! O que eu gostava mesmo de saber é quem é esse gajo com quem vou ter de ir lanchar. Segundo diz a minha mãe é um primo afastado. Também, quero lá saber quem é o homem, o que me interessa, neste momento, é comer. Estou cá com uma larica…. Nunca mais chegamos. Se calhar o lanche é naquele lugar onde fui com a minha mãe comer queijadas. Chiça! Espero que não, era longe como um raio. Ainda morro de fome.

Na ânsia de se livrar o mais depressa possível daquela responsabilidade, Jacinto conduzia um pouco mais rápido do que seria suposto. Só pensava em entregar o miúdo ao Senhor Doutor e pôr-se a andar: às sete horas tinha de ir buscar a menina Filomena à sua ginástica semanal. Isso sim, era o seu trabalho preferido.

A menina Filó é um anjo!

Enquanto divagava no seu íntimo, o motorista ia olhando de soslaio, através do espelho retrovisor. O miúdo que estava, aparentemente, descontraido, deitado de barriga para baixo:

O que raio estará o puto a pensar, com aquela cara de malandro? Cá para mim sente-se um rei, a ser transportado no seu coche real. Agora estou a reparar, a roupa que ele tem vestida não lembra o Diabo, parece um homem miniatura: com colete, gravata e tudo. Credo!

Ah, até que enfim, estamos a chegar. Graças a Deus, vou poder despachar o miúdo.

Nesse momento, também o Pilas se apercebeu de que estavam a chegar, como se acabasse de ler os pensamentos do motorista:

O tipo está a andar mais devagar e está com cara de quem está a chegar. Viva, finalmente vou comer e fazer uma mija. Urgentemente. Desta vez, nem vou esperar que este troncho me venha abrir a porta, senão, da forma como ele anda, ainda faço aqui mesmo.

Logo que o carro abrandou à porta da Pastelaria onde era suposto pai e filho lancharem, o Pilas abriu a porta e saltou para a rua, antes que o Jacinto tivesse sequer tempo de pensar no que tinha de fazer a seguir. Aliás, o desgraçado do homem hesitou uns segundos, sem saber o que fazer: se sair do carro atrás do miúdo e obrigá-lo a entrar novamente até acabar de estacionar, se estacionar primeiro o carro e depois ir atrás do puto.

Uma buzinadela impaciente atrás dele arrumou, rapidamente, as suas hesitações: teve mesmo de esquecer o miúdo por momentos, de forma a conseguir estacionar o carro. Foi uma manobra apressada que redundou num encosto, se bem que suave, ao carro de trás e que lhe valeu alguns comentários irónicos por parte do condutor impaciente que lhe buzinara pouco antes. Mas o Jacinto nem o ouviu, tal era a sua angústia em despachar-se a sair do carro e descobrir onde o rapaz se enfiara.

Raios me partam mais a esta profissão de merda. Se não fosse pela menina Filó já tinha voltado para a terra e para o meu taxizito provinciano. Se lá tivesse ficado, a esta hora estava sentadinho na taberna do Alfredo a beber um copito e a conversar. Maldita a hora em que decidi vir para a cidade tentar a sorte.

Como é que agora vou dar com o estupor do fedelho? A esta hora já deve ir por essa rua acima, se calhar até já está no Chiado. Bem, só há uma coisa a fazer: ir à procura dele. Dê por onde der tenho de o encontrar o mais rápido que for humanamente possível.


Coitado do Jacinto: não podia estar mais longe da verdade. A realidade era que naquele preciso momento, já o Pilas tinha acabado de entrar, descontraido, na Ferrari, todo orgulhoso da sua fatiota invulgar.

Embora não passasse de uma criança de 10 anos, dois dos empregados de mesa deram por ele e trocaram olhares interrogativos e desconfiados. À primeira vista, e só pela forma de se vestir, o Pilas confundia-se com um homenzinho miniatura, já que era bastante alto para a sua idade. Mas ao ver-se-lhe a cara de gaiato, logo as dúvidas desapareciam. Assim, só quando chegou ao pé de um dos empregados para lhe perguntar onde podia fazer chichi é que o homem confirmou que não passava de uma criança. Facto ainda mais inusitado, visto aparentar estar ali por auto-recriação, e sozinho.

O Pilas estava êxtase, apesar da sua vontade aguda de chegar à casa-de-banho. Tudo brilhava à sua volta – desde os candeeiros de parede e de tecto, aos talheres geometricamente dispostos em cima das mesinhas. Ele ia olhando para todos os lados, apreciando os espelhos gigantes que forravam as paredes e conferiam àquela sala um ambiente estranho, sem fim. Ia tropeçando nalgumas mesas e nalguns pés que se estendiam, mais descontraidos, para além das mesas. Algumas vezes lembrava-se de pedir desculpa, outras nem por isso. Por fim, lá chegou à casa-de-banho, deixando para trás olhares de indignação e outros de curiosidade emproada. Já à porta da salvação fisiológica, demorou algum tempo até compreender qual era a dos homens. Os símbolos pendurados nas portas não eram especialmente explícitos:

Que raio de bonecos mais amaricados: os dois parecem meninas.

Só quando entrou é que descansou ao ver um homem de costas para ele e de frente para um dos urinóis. O Pilas, considerando aquela experiência engraçadíssima, preparou-se para se aliviar. Colocou-se, estrategicamente, ao lado do homem. Forçou-se por conter a curiosidade. Abriu o fecho das calças – depois de alguma luta – e tentou fixar a atenção nos seus próprios movimentos, mas, no final, a vontade de olhar para o lado foi mais forte do que ele. Olhou, primeiro de raspão – como quem não quer a coisa -, e depois com verdadeiro interesse. Ficou estarrecido, era como se estivesse a olhar para a sua própria pila, mas em tamanho XXL. Até a cor era idêntica. O mais embaraçoso foi quando reparou que, também, o homem olhava para ele com o mesmo ar espantado, e com um interesse mal disfarçado.

Olha para isto. Não querem lá ver que este é que é o miúdo da Maria Adelaide? Não há dúvida que ele tem algumas semelhanças em relação a mim. Felizmente não é através das pilinhas que se fazem os testes para determinar o grau de parentesco entre pai e filho.

Enquanto pensava, o Camilo terminou as suas operações mictórias e, depois de lavar as mãos, ficou por ali a olhar para o espelho. Hesitante: sem saber como se dirigir ao miúdo (que até devia ser seu filho, a acreditar nos seus próprios olhos avaliadores).

O próprio Pilas o salvou desse incómodo, interrogando-o ao passar por ele:

- Olá! Por acaso conheces um tipo chamado Camilo? É que ele deve estar à minha espera ali fora, no meio de toda aquela gente esquisita.

Devido ao inesperado da situação, o Camilo ficou a olhar para ele, sem saber bem como se lhe dirigir. Só lhe saiu, para si próprio, um pensamento.

A lata do puto.

Empinou o nariz e endireitou as costas, o melhor que conseguiu. Olhou para o Pilas, bem de alto e, por fim, apresentou-se como sendo o homem de quem ele estava à procura:

- Sou eu o Doutor Camilo que te convidou para lanchar. Estás bom?

E, sem esperar pela resposta, agarrou no ombro do rapaz e empurrou-o à sua frente. Assim, voltaram juntos para a sala e sentaram-se à mesa luxuosa do lanche.

Instalaram-se os dois frente a frente. O Camilo teve o cuidado de sentar o Pilas de costas para a sala, na esperança de conseguir que a presença da criança passasse despercebida. Só não se lembrou do pormenor dos espelhos que cobriam as paredes quase até ao chão.

Bom, pelo menos assim ninguém vai reparar nos modos do miúdo que não devem ser lá muito famosos. Acho que foi boa ideia mandar vir um batido com palhinha, não se deve pingar. O que um homem faz para conseguir cativar uma mulher.

Ora bolas, só me faltava esta, está ali a Tixa: a maior linguaruda da cidade. Estou tramado. Espero que não me veja aqui com uma criança desconhecida.

Finalmente, aqui vem o batido e as torradas! A ver se consigo despachar isto o mais depressa possível.

Quando o Pilas se sentou de costas para as outras pessoas ainda pensou em protestar, mas ao reparar na mais-valia à sua frente – o espelho – rapidamente desistiu e pôs-se a observar toda a gente à descarada.

Este gajo é mesmo parvo: quis lanchar comigo e agora não diz nada, só olha para todo o lado, como se estivesse à espera de alguém. Será que vem mais alguém lanchar connosco?

Também, se vem mais alguém ou não, é-me indiferente, o que me interessa neste momento é que os morfes vêm aí. Só espero que sejam melhores do que os da Escola… . Aqui está, ora vejamos: um batido de… banana e uma torrada cheia de manteiga. Um bocado miserável, mas que se lixe. Quero é comer.


No mesmo instante, o Camilo estava a fazer umas acenadelas sorridentes a uns – sobretudo mulheres – e a fingir que não via outros. Recomeçara a ficar tão cheio de si próprio que se descontraira e quase se esquecera que o Pilas comia animadamente à sua frente:.

Que alívio. Enquanto estiver entretido a comer não se lembra de fazer nenhum disparate. Agora por disparate: onde é que se terá metido o palerma do Jacinto, espero que não tenha batido com o carro da Filó.

Raios o partam, o miúdo come com a boca toda. Ainda bem que ficou de costas para as pessoas. Só não consigo compreender porque é que continuamos a ser o centro das atenções daqueles ali.

O Camilo tinha-se esquecido da existência dos espelhos mesmo atrás de si. O Pilas estava em alta: nem cabia nele de tão contente. Ia fazendo as suas fosquices inofensivas, através dos espelhos:

- Afinal, quem és tu?

A pergunta do Pilas saiu inesperada e tão fora do contexto superficial em que o Camilo estava habituado a navegar que, a princípio, nem teve bem a certeza de ter realmente existido. Apesar disso, o instinto da curiosidade obrigou-o a olhar para o miúdo sentado à sua frente. Mas este estava aparentemente concentrado – na medida do que é possível para uma criança de 10 anos – na palhinha às riscas azuis, por onde sorvia ruidosamente o batido de banana, ao mesmo tempo que mastigava um pedaço de torrada que lhe deixava um fiozinho de manteiga a escorrer pelo queixo abaixo. Ora bebia o batido, enquanto guardava o bocado de torrada na boca, no interior de uma das bochechas, ora dava dentadas, demasiado grandes, vendo-se obrigado a empurrar com os dedos o bocado que não cabia e ficava prestes a cair. Era uma cena muito deselegante, e o Camilo congratulava-se por ter tido a esperteza de colocar o rapaz de frente para a parede. Evitou, a custo, um trejeito de desagrado enojado e tentou descontrair-se um pouco enquanto pensava com os seus botões:

Pareceu-me ouvir o puto falar... . Talvez não. Devo ser eu que estou a ouvir vozes…

Olhou mais uma vez para o relógio e continuou absorvido na sua própria pessoa.

Já são quase seis e meia. Ora, pelas minhas contas, se o Jacinto não apareceu, a esta hora deve estar a levar a Filó para o “Health Club”. Assim, pelas minhas contas, lá pelas sete e um quarto, mais coisa, menos coisa, deve estar a rebentar por aqui para levar o puto de volta ao seu mundozinho desagradável.

Já agora que penso no miúdo: continuo sem saber como é que ele se chama. Agora também, é chato perguntar-lhe o nome, ainda se põe para aí a desbobinar à parva.


Os pensamentos desinteressantes do Camilo foram interrompidos de forma abrupta:

- Quem és tu?

Desta vez teve a certeza que a voz tinha saído da boca do rapaz, dado que ele falara de forma bem clara, até martelada. Pareceu-lhe que o Pilas falara tão alto que sentiu os batimentos do coração aumentarem de ritmo e uma onda de calor trepar-lhe até à raiz dos cabelos. Só que quando olhou para o rapaz, sobressaltado, reparou que ele estava a observar, fascinado, qualquer coisa que parecia estar a passar-se na parede mesmo por detrás dele.

Não chegou a ter oportunidade de responder, pois, no preciso momento em que abriu a boca para dizer qualquer coisa, fosse o que fosse, engasgou-se com a própria saliva e desatou a tossir, assustadoramente. Babou-se, chorou, arrotou, etc... . Tudo sons muito pouco indicados e confrangedores para um ex-colunável, casado com uma, ainda, colunável. Obedecendo aos rígidos mandamentos da etiqueta, todos fingiram não estar a dar pela cena que se passava naquela mesa, mas a maioria não resistia a deitar olhadelas, entre indignadas e curiosas, pelos rabinhos dos olhos. O mais chocante, para quem estivesse interessado em saber, nem era verem uma criança, vestida de forma ridícula, lá sentada – facto inédito por ali -, mas sobretudo a confusão e o barulho que emergiam daquela mesa, provocados pelos espasmos sonoros do ex-político.

No final, a preocupação do Camilo não foi responder à pergunta que lhe fora formulada, mas tentar ocultar, o melhor possível, toda a cena caricata que se ia desenrolando.

Ora bolas, tenho a certeza que o Tinoco ouviu a pergunta do miúdo, até se inclinou mais para o nosso lado. Estou frito. Se o pai da Filó vem a descobrir que tenho um filho de outra mulher estou bem lixado. “Bye, bye” vidinha descansada. Também, não sei o que me deu para entrar neste número. A Maria Adelaide é boa febra, mas não compensa perder tudo o que tenho neste momento. E agora o que raio é que vou dizer ao puto?

- O que é que a tua mãe disse sobre mim? – Perguntou o Camilo, na esperança de contornar a questão.

- Nada! – Respondeu o Pilas.

- Nada? – Surpreendeu-se o Camilo, sentindo-se um pouco vexado.

O estupor da tipa não disse nada ao miúdo. E agora, como é que vou descalçar esta bota?

Mas o Pilas não lhe deu grande margem de manobra:

- Só disse para não aceitar o teu dinheiro. Mas se me quiseres dar algum, podes dar que eu não lhe digo nada. Já estou habituado a que me deêm dinheiro lá na Agência. As velhas adoram ver-me mexer na pila e dão-me sempre umas moedas. Também não digo nada à minha mãe. No outro dia, foi um velho, meio coxo, que me pediu para lhe mostrar a minha gaita porque a neta lhe tinha falado de mim, impressionada. É fixe ser famoso. Agora, só não sei quem és tu. Pelo que eu vi na casa-de-banho, tens uma pila maior do que a minha. Felizmente já és velho, não me palmas as miúdas.…

O rapaz debitara todo este discurso de um só fôlego, sem sequer permitir que o Camilo o interrompesse. Aliás, mesmo que ele quisesse parar a verve do Pilas, não teria conseguido, porque o miúdo encontrava-se bem lançado. O pior de tudo foi que quase toda a gente na sala ouvira aquela tirada e o resultado estava à vista: silêncio sepulcral. Até se conseguiria ouvir o zumbido de uma melga, caso houvesse alguma pelas imediações:.

Pronto, agora é que está tudo estragado! Como é que me vou conseguir limpar de todo este relambório?

Entretanto, o Pilas como que esquecera o que dissera havia alguns segundos e regressara à sua atenta observação da parede – forrada por um espelho gigante – que estava nas costas do Camilo. Descontraido.

Escusado será observar que o Camilo estava em pânico: gotinhas de suor começaram a escorrer-lhe pela cara abaixo. Olhava para um lado e para o outro, com um sorriso amarelado, tentando transparecer indiferença e até alguma boa-disposição, mas quem o conhecesse veria que os seus olhos o traiam: estavam mínimos – dois pontos frios como aço – atrás dos elegantes e dispendiosos aros de metal azulado. Se estivessem só os dois na sala, ele teria sido bem capaz de espancar o rapaz. Aliás, na Assembleia da República ficara bem conhecido pelas suas atitudes frias e trejeitos agressivos para com os adversários que o tentavam ridicularizar. Nessas alturas efervescentes, quem olhasse para ele teria a sensação de que a sua cabeça estava inchada e atingia o dobro do tamanho. Não deixava de ser uma imagem preocupante, se bem que algo ridícula.

No silêncio da sala começou a nascer um burburinho, ao início indistinto, entrecortado por alguns tossicares que tentavam ser discretos na maledicência que ocultavam. Depois, o número de adeptos do comentário desdenhoso foi aumentando, até se tornar, aos ouvidos do Camilo, ensurdecedor. Abriu a boca para chicotear o miúdo com as piores frases que conhecia quando um grito feminino – esganiçado, como manda a tradição – voou pela sala. Todos olharam para a dona daquele som estridente e viram uma senhora – dita fina – levantar-se, de braço esticado, a apontar para a mesa do Camilo, e mais especificamente para o próprio Camilo. Este, desgraçado, estava à beira de uma crise cardíaca, tal a loucura de indiscrições a que, aparentemente, continuava sujeito.

Mau Maria! O que raio é que se está agora a passar? Será que tenho um macaco pendurado no nariz, ou será que o estupor do miúdo tem um piolho aos pulos no alto da cabeça? Calma Camilo, controla-te…

Aos poucos, as outras pessoas foram, também, olhando para o local para onde o dedo, prolongado por uma unha bicuda bem vermelha, apontava. Uns exclamavam:

– Que nojo!

Outros pareciam não compreender o que se estava a passar e erguiam-se das cadeiras para tentar ver melhor, fosse o que fosse. No meio daquela confusão gerada, o Camilo olhou para um dos empregados que, após fazer um trejeito facial onde se misturava o constrangimento e a vergonha, pegou num pano – branco imaculado – e encaminhou-se na sua direcção.

O ex-político nem queria acreditar no que presenciava. Olhou, feroz, para o miúdo, considerando-o, no seu íntimo, culpado por tudo o que se estava a passar, e só nesse momento é que percebeu que o que quer que tivesse enojado a assistência que o rodeava, se encontrava, não na sua cara, não no alto do cocoruto do Pilas, mas por detrás da sua própria cabeça:

Então era por isso que o rapaz observava tão atentamente a parede aqui atrás. Mas, o que Diabo é que …?

Antes que tivesse tido tempo de completar a frase do seu pensamento e o movimento simultâneo de olhar por cima do ombro, o Pilas saltou do seu lugar para cima da terceira cadeira da mesa – a que tinha estado desocupada – e, com o bocado da torrada que tinha estado a mordiscar, esborrachou uma enorme barata vermelha que tentava – a custo – trepar pela parede. Escusado será dizer que, após aquele acto heróico, todo o verniz que envolvia a camada adiposa da maioria dos clientes daquela sala de chá, estalou e irromperam as mais diversas cenas. Desde algumas senhoras mais sensíveis que desmaiaram, ou ameaçaram fazê-lo; a outras que aproveitaram para se irem embora, muito indignadas – sem pagar, é claro. Ouviram-se, ainda, alguns palavrões pouco apropriados e, por fim, como pano de fundo, o riso histérico do Pilas que se sentia nas suas mil e uma noites.

Afinal, não é só a minha pila que os impressiona. Boa!

Em relação ao Camilo, ficou sentado no seu lugar, como que pregado ao assento, com a sua linda cabeçinha emoldurada pelos restos mortais da barata e da torrada que se espalhara pela parede e pelo espelho:

Eu sabia que isto ia dar asneira. Quem é que me mandou ter ideias espertas?

Olhou para o Pilas que voltara a atacar o seu batido de banana, com a maior das descontrações. Tinha um ar exultante. Sentia-se o maior. E no meio do caos que se instalara à volta dos dois, ouviu-se uma vozinha perguntar mais uma vez:

Quem és tu?

Thursday, May 10, 2007

DERIVAÇÕES XII

a partir do texto Escadas de Incêncio de Henrique Dória.

no quarto,
abriu-se uma porta,
cortava-se a garganta.
ao longo das paredes
pedras
arados
nódoas.
no calor das casas, por vezes,
abre-se um buraco,
os objectos tornam-se estranhos,
mesmo as portas, mesmo as fechaduras.
subia pela parede uma palavra que ficaria para sempre
................................................................. dentro do quarto,
talvez nem bem uma palavra, mas o rumor das coisas,
uma parte, e outra parte e outra parte ainda.
ouve – as palavras, por vezes, crescem como estradas
.............................................................. de gavetas vazias,
enquanto a cidade em volta cai sobre as janelas.
uma chave para tudo
o olhar pousado sobre as coisas
como uma flecha, melhor, as coisas mesmas sem o olhar.
portas mesmo dentro das nódoas
dentro da cortina
portas mesmo dentro dos teus passos
que atravessam agora o vidro da janela do quarto
com traquilidade de se julgar que a alegria voltará
................................................................... mais tarde;
de pedra em pedra dedos que procuram,
e tantos quartos vazios
tantas mesas pesadas sob os vasos e o tecto do quarto.

viessem as cadeiras vazias do quarto pousar sobre o parapeito
e arrulhar para a ruga do tecto.

um telhado a fazer equilibrismo,
passinhos tímidos de flamingo sobre a ruga do tecto.
e sob o qual se junta, entre uma pedra e outra pedra
um lugar onde plantar as coisas.

Friday, April 27, 2007

A SAGA DO PILAS VIII

Alguns meses após o faustoso e noticiado casamento, e quando já não arriscava levantar suspeitas, a natureza valdevina do Senhor Doutor não se conseguiu mais conter dentro de uma pele de marido atencioso e fiel e regressou às suas actividades noctívagas. Lançou-se primeiro a medo, mas depressa se desleixou e, em crescendo, atingiu toda a sua plenitude de engatatão. O cúmulo do desplante foi a sua tentativa de reaproximação a Maria Adelaide, sendo o seu objectivo final, reconquistar o lugar no seu coração, ou mais correctamente: reocupar o lugar do banco de trás do seu carro.

Como um D. Juan experiente que se achava, começou por atulhá-la de flores e presentes, pensando que dessa forma a faria esquecer as partes negras do passado e ansiar pelas ardentes cambalhotas que davam os dois juntos. Quando se lhe esgotou a paciência e chegou à conclusão que daquela maneira, simples, mas dispendiosa, não ia lá, pediu conselho ao seu melhor amigo, um reconhecido psiquiatra da praça, que o aconselhou a optar pela aproximação, temporária, do filho comum (que, a bem dizer, ele nunca reconhecera como seu).

Assim, embora não correspondesse minimamente à verdade, com frases quentes e lágrimas nos olhos, Camilo convenceu a Maria Adelaide de que estava arrependido de todo aquele tempo de afastamento entre ele e o filho de ambos e, por fim, conseguiu que ela o deixasse levar o miúdo a lanchar, numa tentativa de que, pelo menos, se conhecessem. E ela que, desde sempre, e sobretudo, desde que fora mãe, se sentia carente e muito sozinha, acedeu a esse pedido e, rapidamente, se começou a aperceber de que corria sérios riscos de deslizar para a tentação. Resultado, todas as noites fazia a sua ginástica, a dobrar, e tomava um duche frio, antes de ir para a cama, na esperança de arrefecer o desejo que, cada vez mais, a ia invadindo.

Apesar de sonhar e ambicionar uma vida igual à de algumas das personagens das novelas que se habituara a ver todas as noites, ainda conseguia ter alguma presença de espírito para admitir para si própria que os finais felizes, geralmente, só aconteciam nos filmes americanos e nos romances. A vida, tal como ela permitia ser vivida, não era pêra doce. Todos os seus pensamentos entraram em colisão uns com os outros. E, por fim, lá se auto-convenceu de que dar a hipótese ao Camilo de conhecer o filho era humano e saudável.

Como seria de esperar: o primeiro e único encontro entre pai, político e filho, conhecido por Pilas, foi logo para abrir, e fechar, um completo desastre. Não só o Camilo não estava minimamente preparado para lidar com uma criança (fosse ela qual fosse), como nem sequer achou que devesse fazer um esforço, mesmo que pequeno, para ultrapassar a cortina da idade que, só por si, já era densa. Na sua consciência de classe e sobranceria, limitou-se a fazer de corpo presente numa situação que exigia, no mínimo, o coração. Convenceu-se de que o miúdo é que tinha de arranjar maneira de chegar a ele, já que não passava de um puto. De salientar que o Camilo era daqueles que tem um primeiríssimo nome de Doutor; isto para não falar na sensação de importância que lhe dava o facto de se intitular e considerar um dos políticos importantes da praça.

Por seu lado, no dia do fatídico encontro, o Pilas não fazia a mais pálida ideia de quem era o Doutor Camilo com quem tinha de ir lanchar, e a bem dizer, nem lhe interessava. Vivia à farta os seus 10 anos, sentindo-se o rei da paróquia. Dadas as circunstâncias sociais e “ambientais”, o seu linguajar era bastante livre (para não dizer chocante). Assim, nem a vontade interesseira de, através da conquista do filho, reconquistar a mãe fez com que o Senhor Doutor tivesse vontade de tentar uma segunda abordagem. Até o local do encontro parecia ter sido escolhido a dedo, com o objectivo daquilo não resultar: a Ferrari.

Thursday, April 26, 2007

DERIVAÇÕES XI

a partir do texto O Lodo de Alfredo Cortêz.

veste certo esforço em enfiar uma agulha num espelho.

diz – passo aqui os dias e as noites com a casa toda,
........ com as marcas na ponta das unhas,
........ a sacudir a cinza com o dedo mínimo.
diz – eu vomito o resto no café aqui da esquina,
........ no meio das gargalhadas de todos.
diz – arremedar a voz da canalha.

o xaile está pendurado por baixo da escada.
ele lambe o cigarro e vai sentar-se numa cadeira
à proa.
vai aos soluços o pano e, depois,
a mesma disposição de todas as coisas.
passos na escada – pausa.

diz – é que tenho muita pena que seja tão desigual.
........ aprendi na leitura dos primeiros livros que as mães
........ são como santas,
........ num campo grande cheio de sol,
........ e o sol pica.

diz – pode lá acreditar-se na perseguição das coisas
........ que não têm vida.

só se faz luz na sala depois de descer completamente o pano.

Monday, April 23, 2007

CINCO PEQUENAS HISTÓRIAS, EM LISBOA. (I)

E por si se move!

Com o ligeiro tremor de terra que abalara a cidade de Lisboa, a perna de presunto desprendera-se da cunha que a sustinha no ar - um pouso para moscas. Na sua queda rasgara o espaço, e como uma guilhotina decapitara o taberneiro Pépe, cuja cabeça, rolando pela banca até cair para dentro da panela ebuliente, forcejara com a língua, nariz e dentes, para alterar a rota da fatídica trajectória. Pouco depois caíram as cebolas, que entrelaçadas tinham pendido também na trave arqueada.
Notificando o insólito caso de acefalia às autoridades, a mulher serviu, nessa noite ao jantar, sopa a amigos e familiares.

RETRATO DE SIROB NAIV


Saturday, April 21, 2007

A SAGA DO PILAS VII

No que diz respeito ao excelentíssimo senhor doutor Camilo – político de segunda e verdadeiro pai biológico do Pilas – nem queria ouvir falar que tinha um filho com a Maria Adelaide ou com quem quer que fosse. Isso representaria uma responsabilidade que ele nunca estaria disposto a acatar, pelos menos enquanto fosse socialmente semi-famoso e tivesse saída entre as mulheres. Assim, desde sempre se tentara esquivar da sua quota-parte na criação e desenvolvimento de “semelhante miúdo”.

Nos primeiros tempos, logo após o parto, Maria Adelaide, durante os períodos mais dolorosos em que era acometida de acessos de solidão e desespero, ainda tentara falar com o excelentíssimo senhor doutor Camilo: no telefone de casa, nunca ninguém a atendia; quando ligava para o escritório, limitava-se a conseguir ultrapassar a primeira etapa da telefonista, para, logo de seguida, esbarrar na secretária, a educada Dona Lucinda. O contacto entre as duas tornou-se de tal modo frequente que, a partir de certa altura, foram enriquecendo e apimentando as habituais frases de circunstância. A empatia descoberta por ambas foi revigorante para as suas vidas. Começaram por trocar receitas e piadas sobre os homens em geral e, por fim, já se arriscavam a criticar e a queixarem-se dos seus homens em particular, como velhas amigas. Criaram mesmo o hábito de irem almoçar juntas uma vez de quinze em quinze dias. Aproveitavam essas ocasiões para partilharem uma garrafinha de vinho e excederem-se nas dietas alimentares: terminando sempre as refeições bem regadas com o doce mais calórico do restaurante e o Porto mais caro da casa.

Nesses dias, a Dona Lucinda já não ia trabalhar da parte da tarde, nem seria capaz de o fazer, mesmo que quisesse: limitava-se a apanhar um táxi que a deixava à porta de casa. Entrava cambaleante, sempre na esperança de ser surpreendida pela presença do marido. Mas nunca teve essa sorte. Assim, descalçava-se logo no hall de entrada e, após se servir de um generoso wisky duplo ou triplo, ia-se despindo e beberricando a bebida áspera até atingir a casa-de-banho. Aí, tomava um duche quente, quase a escaldar, e, depois de ter depreciado e odiado até à exaustão o seu corpo avantajado, outrora roliço e apetitoso, despejava o resto que ainda pudesse haver no copo pela garganta abaixo e entornava-se na cama, toda nua, a sonhar com esbeltos príncipes e musculosos cavaleiros que a cortejavam e cobiçavam, arriscando as próprias vidas para a conquistarem. Nessas noites, perdida na semi-inconsciência que o álcool lhe oferecia, a Dona Lucinda chegava a conseguir sentir-se uma mulher feliz.

Para Maria Adelaide, essas tardes que seguiam os almoços de amena – e por vezes exaltada – cavaqueira, prolongavam-se de forma substancialmente diversa. Saía do restaurante habitual com a amiga atrelada ao seu braço esquelético, ambas servindo de bengala uma da outra. Normalmente, a companheira aguentava menos o vinho – embora fosse bastante mais avantajada –, pelo que era a Maria Adelaide que tinha de a ajudar a encontrar um táxi disponível e, sobretudo, a entrar dentro do carro sem que se magoasse. Invariavelmente, tinha de dar uma boa gorjeta ao homem para, de algum modo, tentar garantir que ela seria entregue no destino pretendido.

Depois do automóvel partir, Maria Adelaide ficava a observá-lo até o perder de vista numa curva qualquer. Muitas das vezes, mesmo após deixar de o ver, ali ficava, especada, a olhar para o ponto de fuga onde vira o taxi desaparecer no último segundo. Ausente da vida que passava, apressada, por ela. Perdida no labirinto da sua imaginação. Demorava alguns minutos a recompôr-se e a situar-se no espaço e no tempo. Quando, por fim, conseguia encontrar-se, tomava balanço e punha-se a andar em direcção a casa, sem grande energia. O percurso era longo. Mesmo assim, ia sempre a pé. Pelo caminho iam-lhe dando acessos de gula, incontroláveis, que nem ela compreendia bem porquê, já que não era de uma fome normal que se tratava: mais uma vontade, ou mesmo necessidade de comer, pura e simplesmente. Assim, entrava em todas as pastelarias por onde tinha o azar de passar e lá comia - ou pedia para embrulhar e ia comendo pelo caminho – qualquer coisa, de preferência um doce: um bolinho de côco numa, um chocolatinho noutra, uma bola de Berlim com creme na seguinte, e por aí adiante. Quando, finalmente, dobrava a esquina que desembocava na sua rua, já se sentia quase a rebentar. Se quisesse enfiar mais alguma coisa pela goela abaixo, só com a ajuda de um pau: como se fazia para engordar os gansos. Já a subir as escadas, tentava apressar-se para entrar em casa, mas a dilatação do estômago e a má-disposição impediam-na de acelerar o passo. Logo que conseguia acertar com a chave no buraco da fechadura, abria a porta de rompante, fechava-a com o pé, já em desequilíbrio, tal a ânsia de chegar à casa-de-banho. Nem precisava de enfiar os dedos na goela, os músculos da barriga – bem treinados – ajudavam-na e expelir todo o entulho que lhe obstruia a respiração. Havia dias em que pensava que o coração não ia aguentar e rebentaria a qualquer momento; havia outros dias em que pensava que os olhos lhe iam saltar das órbitas e afogar-se na sanita, no meio daquela mistela nojenta que fizera parte dela durante cerca de uma hora. Havia alturas em que a chama ácida que lhe queimava os interiores era tão intensa que Maria Adelaide receava ter o estômago rasgado. Fosse como fosse, a esperança era sempre a mesma: a de que alguém a salvasse daquela loucura. Se não, o melhor era morrer o mais depressa possível, antes que se lembrasse da existência do filho e se arrependesse mais uma vez.

O relacionamento e o entendimento mudo entre as duas estreitou-se ainda mais, numa ocasião deveras infeliz e que se veio a tornar muito desconcertante: a morte do marido da Dona Lucinda e as circunstâncias ridículas que a envolveram. Nesse dia ensombrado, e nos dias que se seguiram, Maria Adelaide foi de grande préstimo à amiga. Aliás, se não fosse ela – e sobretudo os seus conhecimentos no meio funerário – o caso teria sido, com certeza, assunto de interesse mórbido num qualquer pasquim de mau-gosto. Maria Adelaide tratou de todo o invulgar processo do funeral, desde o leito de morte até à última morada, uns palmos abaixo da terra, com uma consideração e conferindo-lhe uma dignidade que o homem, na realidade, não merecia.

Apesar da sua longa experiência, a própria Maria Adelaide ficou de tal forma impressionada com o inesperado desenrolar dos acontecimentos que nem teve coragem de contar toda a verdade sobre as circunstâncias da morte do marido à própria esposa. O seu receio de cair na tentação de partilhar com alguém uma experiência tão insólita como aquela era tão grande que se obrigou a jurar, sobre a Bíblia, silêncio absoluto sobre o assunto:

Nem eu sei bem como vou conseguir fazê-lo, mas macacos me mordam se não vou levar este segredo comigo para a cova. Coitada da Dona Lucinda. Se ela imaginasse o local e a situação, ou melhor a posição, em que o estupor do marido morreu, também ela se finava, só com o desgosto. Nunca pensei que as queixas que ela fazia do homem fossem assim tão reais, sempre achei que lhes devia dar um desconto.


Ainda me arrepio quando penso naquela malfadada noite. Lembro-me de tudo como se tivesse acontecido ontem. Já a noite tinha ficado bem para trás quando o telefone permanente da Agência tocou. Dei um salto e quase morri de susto, pois tinha acabado de adormecer no sofá do escritório, após despachar o meu pessoal para um serviço qualquer para no centro do país. Atendi. Demorei algum tempo a compreender que a voz do outro lado era a da Dona Lucinda. Aliás, o que chegou à minha memória baralhada foi a mistura de sentimentos alheados, entrecortados por soluços sofridos e palavras apenas balbuciadas. Após os primeiros momentos de confusão, lá consegui compreender que a voz deformada pertencia, de facto, à minha amiga e que ela me estava a dizer que o marrido morrera. Ao início fiquei impressionada, como é natural quando sabemos da morte de alguém conhecido, ou semi-conhecido, como neste caso. Quando tentei saber alguns pormenores sobre o sucedido, respondeu-me, já cheia de uma convicção que analisando agora com calma me surge um pouco falsa, que, segundo as testemunhas presentes (colegas e clientes), a tragédia acontecera num jantar de negócios que decorrera em Coimbra.

Até ali tudo aparentava estar dentro da normalidade (se é que se pode chamar normal uma pessoa morrer). O pior foi o que se seguiu: rezou a versão oficial que o “Senhor Engenheiro Hilário” se encontrava com o seu sócio, e alguns clientes, num jantar de negócios, na cidade de Coimbra. Após um bem regado ensopado de borrego (comida classificada no relatório do médico que assinou a certidão de óbito como pouco adequada para um jantar tardio), o Senhor Engenheiro Hilário sentira uma ligeira indisposição, e achara por bem retirar-se da mesa do restaurante, apresentando as suas maiores desculpas. Metera-se num táxi, visto não se sentir em condições de conduzir, e fora para o Hotel. A caminho do quarto revelara alguma dificuldade em equilibrar-se, facto confirmado, não só pelo recepcionista, mas sobretudo pelos acontecimentos posteriores. Deitara-se. A meio da noite (pelas 2 ou 3 da manhã) gritara por ajuda. O grito de agonia fora ouvido por uma senhora que, nesse preciso momento, se dirigia para o seu quarto, e que por mero acaso passava à porta do Senhor Engenheiro. Ao ouvir aquele pedido de socorro tão aflito que a “assustou sobremaneira”, abrira a porta do quarto de rompante. Nessa altura, nem pensara nas consequências do seu acto. Viu o corpo de um homem, estendido na cama, de boca escancarada a deitar a língua de fora a alguém. Perante aquela cena grotesca, a dita senhora, após os primeiros segundos de espanto e consternação, apercebera-se do quão imprópria e inconcebível seria encarada a presença de uma mulher, ali aos pés da cama de um homem que jazia de braços abertos, como Cristo na cruz. Antes que a referida senhora tivesse tido tempo de bater em retirada com a maior das discrições, fora “apanhada”, por assim dizer, pelo segurança do hotel que, tendo sido alertado por um hóspede anónimo, incomodado pelas “gargalhadas e sons obscenos de um quarto muito perto do dele”, se dirigira para aquele andar à procura dos importunos.

Outro facto curioso nessa história, foi quando a viúva me telefonou a pedir ajuda, às 6 da manhã, já o meu pessoal se encontrar a caminho de Coimbra, sem que eu soubesse que o serviço para o qual tinha sido contactada, uma meia-hora antes, tinha a ver com o marido da Dona Lucinda. Como os meus pais me ensinaram a não acreditar em coincidências, e como sou curiosa como o raio, acabei por explorar um pouco mais o assunto e descobrir que o director de alojamento do referido Hotel, onde se desenrolara esse episódio deplorável, conhecia bem o meu Marcelino. Acabei por considerar mais saudável não perder muito tempo a imaginar porquê, nem a esmiuçar mais essa linha de investigação. Fiz de conta que a razão para esta estranha coincidência era da inteira responsabilidade da pequenez do mundo. Não é mania do ser humano afirmar a toda a hora que o mundo é pequeno?

Para abreviar a história: os meus homens lá foram para Coimbra, na tentativa de encobrir, na medida do possível, os pormenores “obscenos” das inacreditáveis actividades rocambolescas do Senhor Engenheiro Hilário.

A pobre viúva, se tivesse vindo a saber que, na realidade, o marido morrera de ataque cardíaco a meio de uma brincadeira de alcova mais agerrida, com outra mulher, tinha-lhe dado um treco. Escusado será dizer que a referida senhora, solícita e boa samaritana, não era, nem mais nem menos do que a companheira habitual do marido da Dona Lucinda, sendo mesmo mais conhecida pelos clientes da empresa do Senhor Engenheiro do que a própria esposa.

Mais tarde (depois de se refazer da degradação em que participara), o Zé Carlos, encarregado da Agência Funerária, contou-me que quando entrara no quarto do hotel onde jazia o malogrado Senhor Engenheiro Hilário, ia tendo um colapso: o homem jazia todo nú em cima da cama, de braços abertos e um sorriso apalermado na cara, para não falar na língua já inchada que lhe saía da boca. O pior de tudo fora no final: para conseguir enfiar aquele corpo pesado e teso (ainda por cima de braços abertos) dentro das roupas austeras cedidas pela viúva. O melhor é nem entrar em pormenores técnicos...

E foi assim, depois desta cena ridícula e triste, que as duas mulheres foram ficando cada vez mais unidas pelos segredos que escondiam uma da outra, justificados pela amizade, e separadas pelas mentiras em que sabiam viver, justificadas pela vergonha, embora não as quisessem admitir.

Passados uns tempos desta triste novela, a Maria Adelaide veio a saber pela amiga que o Senhor Político de Segunda tinha sido apanhado pelas Finanças numa fraude fiscal menor. Não conseguiu evitar sentir-se, em parte, vingada pela cobardia e pulhice dele:

Foi muito bem feito. Também, já estava na altura de pagar alguma coisinha por conta dos seus pecados, mesmo sendo estes de ordem fraudulenta. Sempre foi um aldrabão. O que sempre o salvou foi ser um espertalhão e um quebra-corações profissional. Ainda me custa pensar nele. O marmelo sempre foi, e sempre será, bom como o milho.

À custa de uma macacada que incluia a fuga aos impostos, o Doutor Camilo vira-se forçado a abandonar o cargo público que à data detinha. E para se aguentar à tona da adorada sociedade que ameaçava ostracizá-lo, viu-se na contingência de casar como mandava a etiqueta da hipocrisia. Escolheu, então, uma menina bem, da chamada alta burguesia (já que a nobreza por essas alturas andava na mó de baixo) e, principalmente, com uma excelente qualidade: muito rica. Ainda para atrapalhar mais a sua vida: a tal mãezinha, doente havia séculos, nunca mais “entregava a alma ao Criador”. Aliás, por aquele andar, ameaçava durar mais tempo do que próprio filho. Para a manter satisfeita e com os cordões da bolsa abertos, arranjara uma empregada a tempo inteiro para cuidar dela, o que lhe custava um balúrdio:

São os ossos do ofício, o que é que hei-de fazer à vida? Esperar. Só me resta mesmo esperar. E é bom que tenha paciência para o fazer, se é que quero ver alguma coisa dali.

Sunday, April 15, 2007

A SAGA DO PILAS VI

A ATRIBULADA INFÂNCIA DO PILAS.

Os meses, e alguns anos, foram passando pela vida da Maria Adelaide e de todos os que a rodeavam. O seu filho foi crescendo, e com ele a fama do seu atributo específico e bem localizado que o tornara tão falado logo no dia em que nasceu. Quando regressara a casa, após o parto sui generis, bem tentara ocultar a característica viril do filho. Mas depressa verificou que os seus esforços eram inúteis, pois, estranhamente, já toda a gente do bairro sabia que o novíssimo habitante das imediações era especial de corrida.

Como a decisão de esconder não resultou (como, aliás está mais do que provado que nunca resulta) Maria Adelaide reformulou os seus esforços e passou, então, a tentar desviar a atenção das vizinhas e a desdramatizar o fenómeno peculiar, com receio de que isso viesse a condicionar, ou mesmo a conduzir a vida futura do seu filho. Nessa cruzada, não conseguiu recrutar o apoio do Marcelino, pois este, como assumido pai que era, na sua ignorância e orgulho, parecia fazer questão de evidenciar o apêndice comprido e espetado do miúdo, sempre que tinha uma oportunidade. E assim, como não podia deixar de ser, a fama do rapaz depressa se propagou, desde o apertado bairro onde viviam, até à escola. Num abrir e fechar de olhos, colaram-lhe uma alcunha aumentativa. Passou, então, a ser conhecido pelo Pilas. Essa alcunha assentou-lhe tão bem que grande parte das pessoas, miúdos e graúdos, que o iam conhecendo, nunca chegaram a saber qual era o seu verdadeiro nome de baptismo. Pilas nasceu e Pilas foi ficando.

Felizmente, o Pilas nunca se mostrou incomodado ou ofendido, e até adorava, para não dizer que venerava, a sua alcunha. Dava-lhe a sensação de ser verdadeiramente importante. Primeiro, na inocência da sua tenra idade, começou por se achar especial por ter o único nome que, ao ser mencionado, provocava caras com expressões engraçadas. Mais tarde – mas muito precocemente - já com consciência da sua aparente superioridade física, orgulhava-se do corpo que tinha. Criou o hábito de passar horas ao espelho, a apreciar e a cuidar do seu aspecto. Sem que ninguém lho tivesse ensinado, no final, conseguia dar sempre à sua figura um aspecto de elegante desleixo: bem ao gosto de algumas das “suas miúdas”.

Quando ainda só rondava os sete anos, o Pilas descobriu, sem querer, que tinha a capacidade de chocar as miúdas mais velhas. Naquela altura não chegou sequer a compreender muito bem porquê, mas a verdade era que sempre que o viam passar, olhavam para ele e cochichavam entre si, com sorrizinhos patetas. Como uma criançola que ainda era, nem se preocupou em explorar muito a fundo as razões daquele interesse. As diferentes reacções agradavam-lhe, pura e simplesmente. Junto das suas coleguinhas e vizinhas sentia-se como se fosse um artista famoso. Já que as miúdas tanto pareciam gostar, acabou por conceber um passatempo “super-fixe”: mostrar-lhes a sua comprida pilinha – que naquela idade mais parecia uma esferográfica-. As mais velhas, que já conheciam os dotes fora do comum do rapaz, mais tarde ou mais cedo, voltavam a procurá-lo para uma segunda exibição – de preferência em câmara lenta –, altura em que deixavam escapar falsos risinhos envergonhados. Sem, no entanto, despregarem os olhos da “estrela da companhia”. As outras, que eram apanhadas de surpresa, sem qualquer tipo de pré-aviso, fitavam-no de olhos bem arregalados e fugiam a sete pés. Algumas da idade dele, poucas, chegaram mesmo a ganhar coragem para se queixarem às respectivas mães, de lágrimas nos olhos e vozinhas aos tremeliques. Após a exibição impudica do Pilas as pobres meninas eram acometidas de violentos pesadelos e gemidos compulsivos.

Essa tendência precoce para a exibição, em vez de abrandar, foi-se acentuando com a idade. Aos 10 anos, os seus ataques de “expressividade física”, embora tivessem um intuito especialmente personalizado de satisfação pessoal, eram susceptíveis de acontecer em qualquer lugar ou situação: na padaria quando, a pedido da mãe, ia comprar pão fresco; na sapataria do senhor Saraiva quando tinha a sorte de se encontrar com alguma vizinha mais desinibida e marota; na mercearia bolorenta da embirrante dona Augusta; na escola, ou mesmo na obscura loja da funerária dos pais. Para tanto, bastava que alguma miúda gira o interpelasse, inocentemente, ou o provocasse, propositadamente. De salientar que quando se utiliza a designação de miúda, é uma força de expressão, já que se está a abranger uma faixa etária extremamente alargada, quer para baixo, quer para cima. Até porque uma das situações em que o Pilas mais se sentia brilhar era quando estava sozinho na funerária e tinha a sorte de lhe entrar pela porta alguma viúva mais arreada. Nessas alturas é que ele justificava, em pleno, o direito que tinha à sua alcunha. Além de que se divertia, à parva, como um simples puto traquinas que era.

O pior foi que, à custa das suas brincadeiras de mau-gosto, muitas clientes fugiram, receando estar a contratar os serviços de alguma comunidade de hábitos necrófilos ou de cultos satânicos. Nessas alturas, a sorte da Maria Adelaide era ser conhecida lá pelo bairro, havia já uns bons pares de anos. O azar do Pilas era a mãe ter a mão pesada e não se poupar a treiná-la no seu rabo que ficava vermelho das chineladas que ela lhe dava sempre que, devido a uma brevíssima ausência sua, via uma cliente a sair esbaforida da loja, com o credo na boca, e um pensamento impróprio na imaginação.

Maria Adelaide justificava, no seu íntimo, estas brincadeiras disparatadas do filho com a falta da figura do pai lá por casa. Ela bem se esforçava por impôr alguma disciplina àquele miúdo irrequieto, mas tinha grandes dificuldades, já que, embora adorasse a mãe, o Pilas pouca importância dava às suas conversas “eruditas” ou aos castigos que ela lhe aplicava.

Derivações X

a partir do texto A Missão de F. de Castro.

mesa,
poliedro
distendendo o busto no recinto e nas abóbadas.
em cima da mesa, não metessem eles por outro atalho
e iriam de escarpa em escarpa,
de aresta em aresta,
onde um aponte emergia como se falasse para a grande pedra
............................................................ laminada.
ninguém se movia de um extremo ao outro da mesa,
tantos olhos entretidos com o jogo dos dedos sobre a mesa,
batendo em graves paredes antigas,
numa sepultura esquecida,
sepultada na profundidade dos alicerces.
havia de sumário
a nudez das coisas
os passos
o rumor da água.

Sunday, April 8, 2007

A SAGA DO PILAS V

- Agora, força! Faça força, mulher! Então, está a dormir…? O que raio é que deram a esta mulher, um sedativo ou quê?!

Maria Adelaide foi despertada, violentamente, das suas divagações, pela voz dura e apressada do médico que espreitava, alternada e ansiosamente, ora para a sua cara, através das pernas escancaradas, ora para baixo (escusado será dizer para onde), à espera de ver surgir os pés do bebé que parecia não querer sair, nem por nada. O puto lá devia saber o que fazer de si próprio, e enquanto podia ia optando pelo local onde se sentia mais confortável: dentro da barriguinha aconchegante e protectora da mãe. Sempre devia ser melhor do que dar de caras, ou melhor: de pés, com a tromba feiosa do médico.

De repente, foi atingida por outro espasmo doloroso que, no entanto, não passou, mais uma vez, de uma ameaça frustrada, posto que ela não conseguiu coordenar, a tempo, a força que tinha feito com a ordem dada pelos músculos doridos da sua barriga e pela voz furiosa do médico. Ficou esgotada e sem acção. Prostrada. Durante os minutos seguintes foi o caos geral: uns gritavam para a espevitar, dando-lhe ordens secas e agrestes, outros tentavam manter alguma sobriedade, esforçando-se por descontrair a futura mãe, dando-lhe palmadinhas conciliadoras na mão. Nos escassos momentos de paz e silêncio que seguiam todo esse espectáculo, ficava a pairar no ar, em suspenso, o constrangimento da excitação anterior.

Depois desta tentativa frustrada de expulsão, Maria Adelaide (re)caiu nas introspecções, depreciativas e apreciativas, sobre a sua vida. Ainda hesitou em continuar por ali a ouvir a loucura que a rodeava ou desistir, pura e simplesmente. Estava tão profundamente cansada de tudo. Mas, apesar da confusão da sua vida, o coração de mãe bateu mais alto. Por fim, caiu na realidade: aquela criança – que era o seu filho - ia nascer, independentemente de quem fosse o seu pai biológico.

Desde que não fosse excessivamente diferente, tinha a certeza que bastava dizer ao Marcelino onde assinar o registo da criança, sem grandes nervos, nem entusiasmos, para, logo, ele se comprometer a confirmar, por escrito, a sua orgulhosa paternidade. Tal como dizia o seu sogro: “homem que é homem tem de fazer um filho à sua gaja”. Mesmo assim, para evitar aborrecimentos, o ideal seria que nascesse com os olhos azuis do “pai”. Lembrou-se que lera numa revista qualquer que os bebés nasciam sempre com os olhos azulados e que só lá para os três meses é que a cor se começava a definir. Concentrando-se neste pensamento, Maria Adelaide tentou descontrair-se:

Tudo vai correr bem, tenho a certeza. Aaiiiiii !!!!

E despertou da sua letargia.

- É agora! Força! Já lhe senti bem os pés… . Aqui estão eles. Até que enfim! Bolas que o puto é patudo. Chiça! E já vem com as unhas bem afiadas ... . Vá lá, só mais um esforço!

A voz grossa e desagradável do médico, e as dores crescentes, espevitaram, mais uma vez, Maria Adelaide que se esforçou por afastar a semi-embriaguês que nas últimas horas, já tornadas inesquecíveis, lhe tinha permitido sobreviver ao caos que parecia rodeá-la. Durante esse espaço de tempo, deixara-se pairar num limbo misterioso, onde era praticamente impossível distinguir entre a espinhosa realidade e os pesadelos com que já se habituara a conviver quando, à noite, estava sozinha em casa, a lavar a loiça ou a passar a ferro as inúmeras camisas do marido. Eram pesadelos/sonhos, incrivelmente variados e todos eles muito malucos. Mas todos acabavam bem como nos filmes americanos.

A dor aguda, que lhe arrancou um grito mal contido, teve o condão de a despertar totalmente e de a fazer estampar-se na realidade do presente que a rodeava: o seu filhote estava, finalmente, a nascer. Olhou para a barriga que, gradualmente, perdia volume, à medida que a cria se libertava das entranhas apertadas da mãe. Enquanto ia retomando, devagarinho, o controlo sobre o seu corpo, ainda disforme, e sobre a sua mente, sempre empreendedora, foi-se apercebendo das alterações que se tinham operado à sua volta:

Mas onde raio é que eu estou metida? Que lugar foleiro é este? Ah! Já me lembro: estou na Maternidade, a cumprir a minha função de ser mãe pela primeira vez na vida… . Boa, afinal sirvo para alguma coisa! Aliás, pelo som estridente que oiço: aquele ali deve ser o meu rebento a protestar. Deixa estar, meu filho, tens toda a razão: se eu estivesse aí no teu lugar a olhar para essa tromba horrorosa também berraria.

O bébé tinha posto os seus dois mini-pés no mundo e a sua voz fazia-se ouvir: primeiro rouca e hesitante e, por fim, bem sonora e segura dos seus protestos. Curiosamente, e apesar do berreiro do debutante no mundo estúpido dos seres humanos, o barulho e a confusão de alguns momentos atrás tinha cessado, incompreensivelmente, dando lugar a uma falta dos sons variados, habituais numa sala de partos. As pessoas presentes continuavam a ser as mesmas do início, com o acréscimo de mais uma ou outra cara nova. E todas elas se apressavam a cumprir as tarefas que lhes competiam. Até ver, de forma exemplar.

A dado momento, o silêncio foi crescendo na sala, até se tornar incómodo, bem pior do que o anterior ruído desagradável. Era como se todos quisessem passar despercebidos. Até o choro vibrante da criança parou, talvez devido à inibição de se sentir tão observado logo no primeiro dia de vida ao “ar livre”.

Um assobio agudo e imperfeito feriu o ambiente. Não deixava de ser uma manifestação pouco comum e muito deselegante para aquele lugar. E para mais, vinda de um obstetra. E o mais grave: após realizar um parto. Até a outra futura mãe, que aguardava a vez de pôr o seu rebento no mundo, contorcendo-se em cima de uma maca curta demais para ela - uivando de dores -, se calou e fixou o seu olhar exausto no médico. Este observava o bébé da Maria Adelaide com um olhar arregalado, onde parecia ler-se um respeito sonhador. As enfermeiras emitiram gritinhos extasiados, enquanto que a pediatra tentava ocultar o seu sorriso apreciativo, por detrás de procedimentos aparentemente indispensáveis. Por outro lado, o anestesista, não resistindo à curiosidade natural que caracteriza o ser humano (quer seja homem, quer seja mulher) foi, também, espreitar. E esse é que não conseguiu mesmo conter-se, exclamando:

- Bolas, mas que grande tusa com que o puto se lança na vida, nunca tinha visto nada assim. Ah, valente !

Em situações normais, aquela observação de mau-gosto seria susceptível de causar graves problemas profissionais ao anestesista. Mas a verdade era que ele se limitara a dar voz - algo exageradamente é certo - aos pensamentos atrapalhados de cada um dos presentes.

Foi precisamente nesse momento que Maria Adelaide começou a tremer descontroladamente, sem que a sua mente confusa conseguisse pôr em ordem aquele corpo ridículo. A certa altura começou a ouvir os seus dentes a bater, desenfreados, uns nos outros. Como quando tremia de frio:

Estou pirada de vez: já nem sou capaz de restaurar a minha própria normalidade. Será que ninguém me dá um estalo para me fazer parar de tremer? Um estalo, por favor!

Sonho ou realidade? Era-lhe impossível determinar, com segurança, o que realmente se estava a passar com o seu corpo. Só sabia que estava muitíssimo nervosa, e com alguma vontade de rir: o médico tinha-lhe feito cócegas. Passado um bocado, Maria Adelaide continuava com a mesma tremideira ridícula. Mas, perante a indiferença generalizada do público que a rodeava, teve mesmo de se descontrair por auto recriação, até que o cansaço passou para segundo plano, acabando por se transformar numa vontade ansiosa de saber o que se estava a passar à sua volta.

Apesar da preocupação que a dominava, a curiosidade começou a ganhar terreno e a certa altura tornou-se insuportável. Queria compreender o que se passava:

Sobre que raio é que estes gajos todos estão a cochichar? O que é que se passa com o meu filho? Merda, ainda por cima esqueci-me dos óculos: não consigo ver nada com nitidez.

Quis espreitar, apoiando-se nos cotovelos, mas sem a ajuda dos óculos não conseguiu vislumbrar grande coisa. Olhou à volta semicerrando os olhos como fazem os miopes, com a intenção de pedir ajuda e algumas explicações, mas ninguém lhe prestou a mínima atenção. Todos se tinham reunido à volta do médico – portanto, bem à frente das suas pernas abertas – com um ar de espanto e riso mal controlado. Estava a começar a ficar irritada, e com razão. Teve vontade de gritar e de esbracejar para que se lembrassem da sua existência invisível.

Ainda abriu a boca, mas a garganta estava tão seca que não conseguiu emitir o mínimo som compreensível, só um grunhido rouco, sem sentido. E então, numa tentativa desesperada de vencer a frustração e ansiedade, deixou os seus pensamentos explodirem:

Mau, Maria! Começo a sentir-me uma boneca articulada nesta posição ridícula, de pernas abertas, enquanto estes gajos estão todos a olhar especados para o bébé. Mas que diabo de situação mais constrangedora.

ALLÔ!!! Estou aqui! Sou eu A MÃE, certo?

A mostarda já estava a chegar-lhe à ponta do seu proeminente nariz, precisamente na altura em que o médico entregou o bébé à enfermeira. Esta, pegou-lhe ao colo com um cuidado que lhe pareceu excessivo: como se de uma peça rara se tratasse. Mesmo para um recém-nascido, aqueles cuidados pareciam-lhe exagerados.

Só então é que Maria Adelaide conseguiu compreender a razão para tamanho alarido na sala de partos: vislumbrou a pilota do seu filho e também abriu a boca de espanto. Era obra! E o mais engraçado é que, não bastando ser bem comprida, ainda estava bem espetada, como o mastro de um navio. Sentiu-se orgulhosa do seu pequeno macho viril:

Ah, grande filhote. Tens uma pila bem melhor do que as pilotas de muitos machões que andam por aí a fazer peito largo nas revistas, para impressionar as miúdas. Ainda agora chegaste e já estás a causar confusão e emoção.

Naquele segundo, teve a confirmação, imediata, de quem era o pai da criança. Em simultâneo subiram-lhe uns calores e uma vontade incontrolável e, a bem dizer, incompreensível de rir às gargalhadas. Mas, logo na primeira tentativa de esboçar um sorriso ténue, as dores foram insuportáveis e viu-se forçada a refrear a exteriorização dos seus pensamentos mais íntimos:

Se estas palermas ficaram impressionadas com a pila do meu filho, haviam de ver a do pai: aquilo é que se pode considerar um homem bem fornecido. Ainda bem que o Marcelino nunca quis fazer parte da equipa de futebol de velhos em que o meu Camilo joga à defesa. Para meu descanso, tanto quanto sei, nunca tiveram a oportunidade de tomar duche no mesmo balneário. Já estou a imaginar o Marcelino ao ver o outro: primeiro roído de inveja e, mais tarde, quando estivesse a ver o filho no banho, num momento de clarividência, a juntar dois mais dois (ou melhor: duas mais duas) e a ter um ataque de fúria.

E estava eu preocupada com a cor dos olhos. Nunca pensei que a pila fosse uma parte do corpo susceptível de tamanha influência e semelhança hereditária. Essa, pelo menos, sempre se pode ir ocultando com as fraldas. Aliás, bem posso estar descansada, se conheço o meu Marcelino, nunca mudará uma fralda na vida. Como ele sempre disse: “os filhos são das mães”.

No seguimento de todos os acontecimentos mais recentes, Maria Adelaide achou mais saudável seguir, com atenção redobrada, todo o processo de recepção de boas-vindas feito ao seu rebento por este mundo. Mas esquecera-se do "binóculo" no quarto, em cima da mesa-de-cabeceira. Bem podia esbugalhar ou semicerrar os olhos e esforçar-se: sem óculos, o resultado era nulo. A última imagem, desfocada, a que tivera acesso não a ajudou, por aí além, a descontrair-se. E para cúmulo do surrealismo que começava a conquistar toda a situação, ouviu uma voz esganiçada que dizia:

- Oh, já viram o pestinha do miúdo? Mas que grande pirilau. Nunca tinha visto nada assim. Vai, com certeza, ser o recordista deste Hospital. Uuiii! Fez-me chichi para o peito … malandrinho!

Depois desta cena disparatada, e algo irreal, adormeceu profundamente. Só passados uns dias é que veio a saber que ia provocando um ataque cardíaco ao anestesista: quando este a viu a dormir, completamente imóvel, pensou que ela tinha tido uma solipampa qualquer, derivada da anestesia que lhe dera (já um bocado à pressa). Segundo o que uma das enfermeira lhe contou mais tarde, o homem ainda tinha a mão que segurava no cigarro a tremer, mesmo muito tempo depois de ter confirmado que, afinal, ela se limitara a desmaiar de cansaço.

Quando recuperou os sentidos, bastante mais tarde, Maria Adelaide não se recordava de nada, inclusive nem tinha bem a certeza de já ter parido. Estava, consideravelmente, estremunhada. Mas quando tentou sentar-se na cama para descobrir onde se encontrava, as dores que a atacaram foram um recordador de memória extremamente eficaz. Tentou, mais uma vez, aquela proeza, tão complicada, de se erguer ligeiramente na cama, desta vez de forma mais suave. Lá conseguiu colocar as almofadas nas costas e na cabeça, de forma a ficar numa posição que equivalia, mais ou menos, a 30 graus de inclinação. Fechou os olhos e tentou aproveitar toda a descontracção característica daqueles raros momentos de silêncio. Aninhou-se o melhor que pôde entre as almofadas, obrigou-se a semicerrar os olhos e, por fim, passou para além do limiar da realidade.

Dormiu durante um bom par de horas: foi um sono agitado, mas sem pesadelos. O incómodo que lhe perturbou o sono, e os poucos sonhos, teve uma origem física, não só derivado das dores variadas que lhe agrediam o corpo, mas também das carências latentes que continuavam a consumi-la interiormente, quer estivesse a dormir ou acordada.

Ainda meio adormecida, começou por ouvir algumas vozes vozes longínquas : apenas um burburinho que ecoava à sua volta. Ainda teve uma esperança, semi-inconsciente, de que aqueles sons fizessem parte do sonho fantástico que tinha estado a viver. Mas, a pouco e pouco, as vozes foram ganhando corpo e aumentando de volume, até se tornarem incómodas. A certa altura, compreendeu que já devia estar instalada na cama do quarto (e não na sala de partos), pois sentiu que estava uma gente diferente por ali. Na expectativa de que, tal como nos sonhos, aquela gente se fosse embora, ou se esfumasse, pura e simplesmente, no ar, Maria Adelaide teimou em continuar de pálpebras bem coladas umas às outras. Só quando ouviu a voz sonora da cunhada é que começou a compenetrar-se de que ia mesmo ter de acordar (a bem ou a mal). Era impossível alguém dormir, ou unicamente descansar, com aquela voz a gritar aos ouvidos.

Espreitou por entre as pálpebras. Vislumbrou a figura familiar do irmão mais novo, o que já não era muito animador, mas o pior foi quando confirmou a presença da adorada e ruiva esposa. Maria Adelaide detestava a Maria de Lurdes:

Lurdes não, LOUrdes! Não embirro com ela, só acho que não passa de uma estúpida presunçosa. Não é que o meu irmão seja um génio. Mas, mesmo apesar de não ter sido bafejado por uma grande quantidade de massa encefálica, pelo menos, o Marcelo podia ter tido a sorte, ou a esperteza, de arranjar uma mulher porreira ou, no mínimo, normal. Esta tipa não existe. Não há dúvida que a alcunha que lhe pus assenta-lhe às mil maravilhas – Madame Lela.

Maria de Lourdes era a filha única de um casal corriqueiro que vivia no Barreiro. Os seus pais tinham um cafézinho que sempre lhes teria dado para viver bem repimpados, não fosse aquela filha adorada que lhes engolia todas as economias, nas coisas mais fúteis. Até conhecer e caçar o irmão de Maria Adelaide, tinha conseguido convencer os pais - o que para ela era canja, bastava uns beijinhos e abraços filiais dados na hora "H" – de que precisava desesperadamente de um apartamento em Lisboa, isto se quisessem que ela viesse a ser alguém. Não precisou de se chorar, nem muito nem pouco, para eles se deixarem ir em mais um dos seus egoísmos: bastou uma lágrima espremida a custo e uma fungadela infeliz. Hipotecaram o cafezito, que lhes servia de sustento, para poderem alugar um apartamento de 2 assoalhadas, bem no centro da capital, para a filha adorada. Facto chocante e risível, não fosse a miséria moral da situação.

Para se distrair e atrasar, o mais possível, o encontro fatal, Maria Adelaide meteu-se a recordar o dia em que conhecera a Maria de Lourdes:

Pode ser que se esqueçam de mim e se ponham a andar.

Lembro-me demasiado bem do dia em que a vi pela primeira vez. Fui uma estúpida inconsciente em dá-la a conhecer ao Marcelo: nessa altura, nem eu imaginei como, mais tarde, me viria a arrepender. Estava descansadinha na praia da Rainha, na Costa da Caparica, com o meu irmão e o grupo do costume, quando reparei numa miúda ruiva, espojada mesmo à nossa frente. Se calhar foram os seus cabelos cor de cenoura que me chamaram a atenção, ou talvez o simples facto de estar sozinha na praia. Como de costume, comentei a minha descoberta ao Marcelo. O tipo ficou doido com os cabelos cor de fogo da fulaninha, que mais tarde vim a confirmar serem pintadíssimos, e especialmente entusiasmado com o seu moderníssimo fato-de-banho: cor-de-rosa, com folhinhos brancos nos contornos das pernas bem torneadas e no decote algo ousado do peito. É claro que o palerma do Marcelo não teve nenhuma dificuldade em chegar à fala com ela, até porque passou todo o santo dia a mostrar-lhe os dotes de futebolista (e como é sobejamente sabido: as miúdas adoram os desportistas). Além disso, não é por ser meu irmão, mas o puto sempre foi o mais borracho do grupo: loirinho, de olhos azuis, muito escuros, e bom corpito.

O que ao início parecia não ir passar de mais um namorico breve e inconsequente, tornou-se de tal forma sério que, para mal dos meus pecados, acabou em casamento. Não sem a interveniência de alguma chantagem psicológica pelo caminho: umas gravidezes, que afinal não passaram de falsos alarmes, tentativas de suicídio forjadas, e cenas de ciúmes compugentes. Por fim, a tipa lá o conseguiu convencer que era a mulher ideal para ele.


A voz imparável e aguda da Maria de Lourdes não lhe permitiu continuar a divagar sobre o que quer que fosse. E por fim, teve mesmo de fazer a ligação à Terra, já que o barulho se estava a tornar impeditivo de qualquer tipo de pensamento minimamente coordenado. Abriu, muito ligeiramente, os olhos: como as crianças quando brincam às escondidas e tentam fazer batota. Tinha receio dos olhares que, com certeza, deviam estar colados à sua figura, ainda disforme, entornada em cima da cama da Maternidade. Maria Adelaide detestava que reparassem nela e sobretudo que a observassem. Nunca se achara nenhuma beleza, bem pelo contrário. Com a ajuda das repetidas ironias dos pais, relacionadas com os seus olhos demasiado pequenos e com a altura excessiva – na Escola e na rua rapidamente passara a ser conhecida pela dois metros - fora adquirindo a insegurança e a timidez que desde os 15 anos lhe vinha dando cabo vida.

Mas, se naquele momento pensava estar a ser o centro das atenções, depressa perdeu as veleidades. Estavam todos de rabo espetado, à volta do berço onde, certamente, dormia o seu bébé. Apesar da algaraviada que o rodeava, este mantinha-se espantosamente silencioso. Se calhar, o assombro do recém-nascido em relação às sombras de caras e corpos gigantes que o cercavam, era tal que nem conseguia emitir um mmm que fosse. Maria Adelaide ergueu-se o mais ligeira e silenciosa que lhe foi permitido - devido aos pontos que o médico achara conveniente dar-lhe após o parto-, para que não se virassem para ela as atenções ruidosas e incómodas.

Começou por tentar identificar os visitantes através dos rabos que conseguia vislumbrar. Rabos grandes e gordosos: os seus amados sogros, obviamente. Rabos metido em calças demasiado justas: os do seu irmão Marcelo e esposa e, ainda, um rabo mirrado e sem história: o daquela prima velha que, desde que o marido a deixara por uma com menos 20 anos, nunca largava a mãe do Marcelino. No que se referia ao rabo musculado do pai oficial da criança... :

Nem cheiro do Marcelino, como não podia deixar de ser. Pulha!

Interrompeu os seus pensamentos amargos para procurar o relógio. Reparou que continuava no seu pulso:

11 horas! A esta “hora da madrugada” ainda deve estar a curtir as primeiras horas de sono. Provavelmente, bem acompanhado. O mais certo é o meu lugar na cama estar a ser conspurcado e aquecido por alguma das jeitosas que o caçam lá pelos bares ranhosos onde ele vai sobrevivendo todas as noites. Nesta altura do campeonato, já nem estou certa de quem tenho mais pena e raiva: se dele, se de mim.

Obrigou a sua atenção a regressar ao quarto quando ouviu a voz desdenhosa da sogra a falar, ou melhor, a chicotear o marido. As suas deambulações mentais focaram-se nos pais do Marcelino. Os sogros de Maria Adelaide, cada vez mais, pareciam tirar algum gozo da situação caótica do filho, por muito que isso pudesse parecer incompreensível e inaceitável:

Gostam tanto de mim que nem querem saber o que realmente se passa com o filho. Preferem que ande por aí na putanhice, sempre é um motivo para dizerem mal da nora. Seja como for, a verdade é que, para eles, a culpa de tudo o que corre mal é sempre minha. Nem lhes passa por aquelas cabeças leves e maldosas que os maiores responsáveis pelo desvario e frustração do filho foram, e continuam a ser, eles próprios, dado que nunca lhe deram o mínimo apoio.

Dos cinco filhos, sempre tinham tratado o mais novo - o Marcelino - como sendo o menos inteligente e o menos capaz. E o pior de tudo era ele ter acatado, plenamente, essa situação. Nunca conseguira superar a condescendência do pai, nem o desinteresse egoísta, e por vezes maldoso, da mãe.

Começara por se orientar, consideravelmente bem, como treinador de andebol, mas passado algum tempo, e após diversas tentativas frustradas, o seu pai submetera-o a tais pressões e chantagens psicológicas que o levara a despedir-se, para se dedicar ao obscuro e deprimente negócio da família – funerais. Realmente, era um daqueles negócios que, por muitas oscilações que sofresse, nunca chegavam a ser preocupantes, pois, feliz ou infelizmente (dependia da perspectiva), os clientes estavam sempre assegurados.

Embora, à partida, na óptica das pessoas sãs da cabeça, a actividade desportiva seja uma ocupação mais agradável e alegre, e ocupe um espaço saudavelmente oposto à actividade funerária; para o Marcelino, o acto da morte alheia sempre o deixara, se não indiferente, pelo menos distante. E ainda bem, tendo em conta a sua, já duvidosa, sanidade mental.

No que se referia à velha prima Mimi: a sua história estava longe de ser brilhante ou modelar. Bem pelo contrário, chegava a ser susceptível de fazer corar um bom cristão. Nem tinha ponta por onde se pegasse. Sempre fora uma mulher dura e fria. Nunca quisera ter filhos e das vezes que lhe acontecera engravidar, arranjara forma de tratar do assunto com toda a limpeza. Da primeira vez saltara da mesa da sala, tantas vezes quantas as que foram necessárias para garantir um aborto natural; da segunda vez atirara-se pela escada abaixo e lá tivera o azar, ou castigo divino, de partir um braço. Mas livrara-se, mais uma vez, de um “peso” e evitara a fatídica e assustadora deformação do corpo. Desde que o marido, bem orientado na vida, com quem casara pura e simplesmente por interesse, a abandonara na esperança de encontrar uma mulher que quisesse ser a mãe dos seus filhos, andava incompreensivelmente colada à mãe do Marcelino. Talvez o elo que as unisse fosse a má-língua, ou a tendência natural de ambas para a maldade. Nisso eram peritas: umas autênticas trabalhólicas.

Precisamente na altura em que os pensamentos de Maria Adelaide iam, de vento em poupa, retomar o fio da meada onde tinham ficado, viram-se obrigados a travar e a meter pata a fundo. As suas adoradas dissertações mentais teriam de esperar por melhores momentos. O seu irmão, certamente cansado de olhar para um recém-nascido sem nada de particularmente interessante, já que estava de fralda e bem tapadinho, ou, então, já farto dos grunhidinhos histéricos da esposa, voltou-se para a cama onde jazia a irmã e dirigiu-se para ela com os compridos braços abertos, ansiosos por a estreitarem com força.

- Querida maninha. Parabéns. Tens ali um mini-Marcelo e pêras. Felizmente para ele sai aqui ao tio nos pontos físicos mais importante, se é que me faço entender...? Vai ser um autêntico valdevino, está garantido. Ainda me vai fazer concorrência com aquele corpito, o pestinha.

E ainda não viste tudo, querido maninho.

Grande parva! Estava para aqui com tantas paranóias que até me esqueci de como alguns homens gostam de disputar a fama de serem bem constituídos. Isto para não falar na importância que para os verdadeiros machos latinos têm as partes baixas. Coitados, chegam a ficar totalmente ofuscados por si próprios. Esses ingénuos ignoram, quase sempre, a qualidade em detrimento da quantidade. Pensam que as mulheres só se preocupam com o tamanho...

Escusado será dizer que, a partir daquele momento, se instalou, naquele quarto de Hospital, a confusão mais total que se possa imaginar. Não eram muitas pessoas, só que as que ali se encontravam tinham todas uma característica comum: uma sonoridade estridente.

Entre beijinhos, abraços e frases de circunstância soltas ao “Deus dará”, Maria Adelaide conseguiu sobreviver, a custo, fingindo ouvir e corresponder, sofrivelmente, ao que lhe era dito. Barbaridades incluídas.

Nem quis acreditar quando aquele maralhal se pôs a andar, uma hora e meia mais tarde. O mais assustador foi prometerem voltar no dia seguinte à mesma hora. Ficou desesperada:

Credo, estou tramada!


Quando ficou sozinha, olhou, pela primeira vez de óculos postos, para o bebé que continuava a dormir no berço: sereno e indiferente ao que se passava à sua volta. Continuou a observá-lo durante um longo momento. Por fim, teve de admitir para si própria:

Até que nem é nada feioso, apesar de ser meu filho. Qualquer pessoa vai partir do princípio lógico que o pirralho é filho do Marcelino. Até porque o Marcelino é que sempre foi considerado a “entidade bonita do casal”, (expressão preferida dos meus queridos sogros e da minha saudosa mãe). Tenho a certeza de que ele próprio se vai comportar como um pai babado pelo seu mini-macho. Nem vai querer saber da história do pirilau bem espetado e comprido do gaiato. E se reparar nesse pormenor, é bem capaz se sentir ainda mais orgulhoso.

Pegou no telefone e ligou, primeiro para casa, onde ninguém lhe respondeu, tal como, aliás, Maria Adelaide já esperava. Começou a falar, ignorando o sinal de chamada não correspondido. Inventou a conversa, que não passou de um monólogo, que gostaria de ter tido com a pessoa que supostamente deveria estar do outro lado do fio. Enquanto falava através do bucal do telefone, como se estivesse a contar confidências ao melhor amigo, ia observando o bébé deitado no minúsculo berço, à distância de um olhar. Sentiu as lágrimas a escorrerem-lhe pela cara. Queimavam-na. Depois, continuou a olhar para o seu filho e a emoção foi mais forte, desligou o telefone pousando o auscultador com violência:

Quero lá saber do Marcelino! O miúdo é bem bonito, tendo em conta que é um recém-nascido. Pensando melhor, até vai ser engraçado ter uma criança para cuidar. E pensar que ainda há umas horas atrás estava em pânico e com vontade de ceder a minha pele à primeira pessoa que a quisesse.

Quando marcara o número de telefone de casa, Maria Adelaide sabia, a priori, que nem o preguiçoso do marido, nem as suas adoradas enteadas, se iriam dar ao trabalho de atender o telefone; ele porque nem sequer iria acordar com os inúmeros toques estridentes do aparelho, elas porque, apesar dos seus meros 6 anos, tinham um feitio de cão e só atendiam as chamadas quando tinham a certeza de ser a maluca da mãe, isto é, nunca. Sendo assim, desistiu de tentar entrar em contacto com a sua família mais chegada e recostou-se na cama, disposta a disfrutar do amor maternal que começava a encher-lhe o peito e a ganhar-lhe a imaginação.

Ainda ligou para o Camilo que, como já vinha sendo hábito nos últimos meses, não atendeu. Até parecia que adivinhava quando era ela, se calhar reconhecia o toque do telefone. Desistiu e jurou nunca mais tentar, pelo menos enquanto estivesse no Hospital. Tinha de se impôr limites para as sensações de humilhação que se permitia sofrer. Sentiu, pela enésima vez na sua vida, que estava sozinha. Hesitou um segundo e depois rectificou o pensamento e o próprio sentimento:

A partir de hoje nunca mais vou estar sozinha, bem pelo contrário. Lá virá o dia em que darei o cuzinho e cinco tostões por conseguir estar repimpada, sem ninguém à volta, nem que seja por uma horita.

Estava farta de sobreviver mal e porcamente, como um pêndulo, entre dois homens que nada lhe davam, só a sugavam, cada um à sua maneira. Um que se tornara um bêbedo chato e desinteressante, que só sabia ir a casa para sacar o dinheiro do negócio soturno que legara à mulher. O outro, o Camilo, o pai presuntivo do seu filho (que naquele instante mamava desalmadamente agarrado à sua mama direita), era um homem já com mais 10 anos do que ela. Para dificultar as coisas, já por si só bastante complexas, era uma figura pública, bastante conhecida, principalmente no meio feminino, já que para além de solteiro era um borracho infernal. Limitava-se a telefonar-lhe esporadicamente, como se nada se tivesse passado entre eles. Durante um desses telefonemas relâmpago, chegara mesmo a dizer-lhe que nem sequer tinha tempo para almoçar com ela. E assim, com a maior das limpezas, e com toda a educação semântica que a língua portuguesa permitia, tinha posto para trás das costas o monte de promessas que lhe fizera... Maria Adelaide sentia-se obrigada a recordar um livro que lera, havia uns tempos, sobre as mentiras que se dizem na cama, no auge do desejo e da paixão:

Começo a achar que, afinal, o que ambos fizemos naqueles semi-encontros, não passou de movimentos acrobáticos de ginástica sexual. E que ginástica, já que os encontros decorreram, invariavelmente, dentro de um carro de Estado, enquanto o motorista, o fiel Alfredo, ia beber um café e comer um pastel de Belém. O filho da mãe até chegou ao cúmulo refinado de me pedir em casamento, logo que eu me livrasse do Marcelino e ele da mãezinha, doente terminal. A velhota é que tinha o dinheiro, e, aparentemente, não só não se separava dele, como ameaçava deserdá-lo se ele se casasse. Num desses encontros, até teve o desplante de me falar dos filhos que podiamos vir a ter quando, finalmente, estivessemos juntos. Filho da Mãe!

Quando deu por si grávida, a Maria Adelaide começou por ficar radiante: como qualquer futura mãe. Até porque havia já algum tempo que, sempre que se encontrava com o Camilo, sentia uns anseios suspeitos de ter um filho dele. Só passados os primeiros segundos de euforia é que o pânico começou a ganhar forma dentro dela. E o Marcelino? O que é que lhe ia dizer? Até porque o filho podia ser dele, se bem que tal fosse deveras improvável. Mas, a verdade era que nem ela podia ter a certeza absoluta:

Que raio de confusão desagradável em que me meti... Tenho de fazer um esforço e controlar as minhas dúvidas e angústias.

Por isso tudo, e mais alguma coisa esquecida, ali estava a Maria Adelaide sozinha, com o seu rebento bem enfronhado nas suas mamas carregadinhas de leite. A criança estava cá fora, era um rapaz aparentemente saudável e com tudo no sítio. E, pelo que já era sabido, bastante viril - um ponto forte para os rapazes. A partir dali, ela só tinha que ir dançando ao ritmo da música que lhe fosse surgindo pela frente e pela vida fora:

Não deve ser assim tão difícil sobreviver com uma criança. Já muitas mulheres o conseguiram antes de mim, porque não eu?!