Sunday, April 8, 2007

A SAGA DO PILAS V

- Agora, força! Faça força, mulher! Então, está a dormir…? O que raio é que deram a esta mulher, um sedativo ou quê?!

Maria Adelaide foi despertada, violentamente, das suas divagações, pela voz dura e apressada do médico que espreitava, alternada e ansiosamente, ora para a sua cara, através das pernas escancaradas, ora para baixo (escusado será dizer para onde), à espera de ver surgir os pés do bebé que parecia não querer sair, nem por nada. O puto lá devia saber o que fazer de si próprio, e enquanto podia ia optando pelo local onde se sentia mais confortável: dentro da barriguinha aconchegante e protectora da mãe. Sempre devia ser melhor do que dar de caras, ou melhor: de pés, com a tromba feiosa do médico.

De repente, foi atingida por outro espasmo doloroso que, no entanto, não passou, mais uma vez, de uma ameaça frustrada, posto que ela não conseguiu coordenar, a tempo, a força que tinha feito com a ordem dada pelos músculos doridos da sua barriga e pela voz furiosa do médico. Ficou esgotada e sem acção. Prostrada. Durante os minutos seguintes foi o caos geral: uns gritavam para a espevitar, dando-lhe ordens secas e agrestes, outros tentavam manter alguma sobriedade, esforçando-se por descontrair a futura mãe, dando-lhe palmadinhas conciliadoras na mão. Nos escassos momentos de paz e silêncio que seguiam todo esse espectáculo, ficava a pairar no ar, em suspenso, o constrangimento da excitação anterior.

Depois desta tentativa frustrada de expulsão, Maria Adelaide (re)caiu nas introspecções, depreciativas e apreciativas, sobre a sua vida. Ainda hesitou em continuar por ali a ouvir a loucura que a rodeava ou desistir, pura e simplesmente. Estava tão profundamente cansada de tudo. Mas, apesar da confusão da sua vida, o coração de mãe bateu mais alto. Por fim, caiu na realidade: aquela criança – que era o seu filho - ia nascer, independentemente de quem fosse o seu pai biológico.

Desde que não fosse excessivamente diferente, tinha a certeza que bastava dizer ao Marcelino onde assinar o registo da criança, sem grandes nervos, nem entusiasmos, para, logo, ele se comprometer a confirmar, por escrito, a sua orgulhosa paternidade. Tal como dizia o seu sogro: “homem que é homem tem de fazer um filho à sua gaja”. Mesmo assim, para evitar aborrecimentos, o ideal seria que nascesse com os olhos azuis do “pai”. Lembrou-se que lera numa revista qualquer que os bebés nasciam sempre com os olhos azulados e que só lá para os três meses é que a cor se começava a definir. Concentrando-se neste pensamento, Maria Adelaide tentou descontrair-se:

Tudo vai correr bem, tenho a certeza. Aaiiiiii !!!!

E despertou da sua letargia.

- É agora! Força! Já lhe senti bem os pés… . Aqui estão eles. Até que enfim! Bolas que o puto é patudo. Chiça! E já vem com as unhas bem afiadas ... . Vá lá, só mais um esforço!

A voz grossa e desagradável do médico, e as dores crescentes, espevitaram, mais uma vez, Maria Adelaide que se esforçou por afastar a semi-embriaguês que nas últimas horas, já tornadas inesquecíveis, lhe tinha permitido sobreviver ao caos que parecia rodeá-la. Durante esse espaço de tempo, deixara-se pairar num limbo misterioso, onde era praticamente impossível distinguir entre a espinhosa realidade e os pesadelos com que já se habituara a conviver quando, à noite, estava sozinha em casa, a lavar a loiça ou a passar a ferro as inúmeras camisas do marido. Eram pesadelos/sonhos, incrivelmente variados e todos eles muito malucos. Mas todos acabavam bem como nos filmes americanos.

A dor aguda, que lhe arrancou um grito mal contido, teve o condão de a despertar totalmente e de a fazer estampar-se na realidade do presente que a rodeava: o seu filhote estava, finalmente, a nascer. Olhou para a barriga que, gradualmente, perdia volume, à medida que a cria se libertava das entranhas apertadas da mãe. Enquanto ia retomando, devagarinho, o controlo sobre o seu corpo, ainda disforme, e sobre a sua mente, sempre empreendedora, foi-se apercebendo das alterações que se tinham operado à sua volta:

Mas onde raio é que eu estou metida? Que lugar foleiro é este? Ah! Já me lembro: estou na Maternidade, a cumprir a minha função de ser mãe pela primeira vez na vida… . Boa, afinal sirvo para alguma coisa! Aliás, pelo som estridente que oiço: aquele ali deve ser o meu rebento a protestar. Deixa estar, meu filho, tens toda a razão: se eu estivesse aí no teu lugar a olhar para essa tromba horrorosa também berraria.

O bébé tinha posto os seus dois mini-pés no mundo e a sua voz fazia-se ouvir: primeiro rouca e hesitante e, por fim, bem sonora e segura dos seus protestos. Curiosamente, e apesar do berreiro do debutante no mundo estúpido dos seres humanos, o barulho e a confusão de alguns momentos atrás tinha cessado, incompreensivelmente, dando lugar a uma falta dos sons variados, habituais numa sala de partos. As pessoas presentes continuavam a ser as mesmas do início, com o acréscimo de mais uma ou outra cara nova. E todas elas se apressavam a cumprir as tarefas que lhes competiam. Até ver, de forma exemplar.

A dado momento, o silêncio foi crescendo na sala, até se tornar incómodo, bem pior do que o anterior ruído desagradável. Era como se todos quisessem passar despercebidos. Até o choro vibrante da criança parou, talvez devido à inibição de se sentir tão observado logo no primeiro dia de vida ao “ar livre”.

Um assobio agudo e imperfeito feriu o ambiente. Não deixava de ser uma manifestação pouco comum e muito deselegante para aquele lugar. E para mais, vinda de um obstetra. E o mais grave: após realizar um parto. Até a outra futura mãe, que aguardava a vez de pôr o seu rebento no mundo, contorcendo-se em cima de uma maca curta demais para ela - uivando de dores -, se calou e fixou o seu olhar exausto no médico. Este observava o bébé da Maria Adelaide com um olhar arregalado, onde parecia ler-se um respeito sonhador. As enfermeiras emitiram gritinhos extasiados, enquanto que a pediatra tentava ocultar o seu sorriso apreciativo, por detrás de procedimentos aparentemente indispensáveis. Por outro lado, o anestesista, não resistindo à curiosidade natural que caracteriza o ser humano (quer seja homem, quer seja mulher) foi, também, espreitar. E esse é que não conseguiu mesmo conter-se, exclamando:

- Bolas, mas que grande tusa com que o puto se lança na vida, nunca tinha visto nada assim. Ah, valente !

Em situações normais, aquela observação de mau-gosto seria susceptível de causar graves problemas profissionais ao anestesista. Mas a verdade era que ele se limitara a dar voz - algo exageradamente é certo - aos pensamentos atrapalhados de cada um dos presentes.

Foi precisamente nesse momento que Maria Adelaide começou a tremer descontroladamente, sem que a sua mente confusa conseguisse pôr em ordem aquele corpo ridículo. A certa altura começou a ouvir os seus dentes a bater, desenfreados, uns nos outros. Como quando tremia de frio:

Estou pirada de vez: já nem sou capaz de restaurar a minha própria normalidade. Será que ninguém me dá um estalo para me fazer parar de tremer? Um estalo, por favor!

Sonho ou realidade? Era-lhe impossível determinar, com segurança, o que realmente se estava a passar com o seu corpo. Só sabia que estava muitíssimo nervosa, e com alguma vontade de rir: o médico tinha-lhe feito cócegas. Passado um bocado, Maria Adelaide continuava com a mesma tremideira ridícula. Mas, perante a indiferença generalizada do público que a rodeava, teve mesmo de se descontrair por auto recriação, até que o cansaço passou para segundo plano, acabando por se transformar numa vontade ansiosa de saber o que se estava a passar à sua volta.

Apesar da preocupação que a dominava, a curiosidade começou a ganhar terreno e a certa altura tornou-se insuportável. Queria compreender o que se passava:

Sobre que raio é que estes gajos todos estão a cochichar? O que é que se passa com o meu filho? Merda, ainda por cima esqueci-me dos óculos: não consigo ver nada com nitidez.

Quis espreitar, apoiando-se nos cotovelos, mas sem a ajuda dos óculos não conseguiu vislumbrar grande coisa. Olhou à volta semicerrando os olhos como fazem os miopes, com a intenção de pedir ajuda e algumas explicações, mas ninguém lhe prestou a mínima atenção. Todos se tinham reunido à volta do médico – portanto, bem à frente das suas pernas abertas – com um ar de espanto e riso mal controlado. Estava a começar a ficar irritada, e com razão. Teve vontade de gritar e de esbracejar para que se lembrassem da sua existência invisível.

Ainda abriu a boca, mas a garganta estava tão seca que não conseguiu emitir o mínimo som compreensível, só um grunhido rouco, sem sentido. E então, numa tentativa desesperada de vencer a frustração e ansiedade, deixou os seus pensamentos explodirem:

Mau, Maria! Começo a sentir-me uma boneca articulada nesta posição ridícula, de pernas abertas, enquanto estes gajos estão todos a olhar especados para o bébé. Mas que diabo de situação mais constrangedora.

ALLÔ!!! Estou aqui! Sou eu A MÃE, certo?

A mostarda já estava a chegar-lhe à ponta do seu proeminente nariz, precisamente na altura em que o médico entregou o bébé à enfermeira. Esta, pegou-lhe ao colo com um cuidado que lhe pareceu excessivo: como se de uma peça rara se tratasse. Mesmo para um recém-nascido, aqueles cuidados pareciam-lhe exagerados.

Só então é que Maria Adelaide conseguiu compreender a razão para tamanho alarido na sala de partos: vislumbrou a pilota do seu filho e também abriu a boca de espanto. Era obra! E o mais engraçado é que, não bastando ser bem comprida, ainda estava bem espetada, como o mastro de um navio. Sentiu-se orgulhosa do seu pequeno macho viril:

Ah, grande filhote. Tens uma pila bem melhor do que as pilotas de muitos machões que andam por aí a fazer peito largo nas revistas, para impressionar as miúdas. Ainda agora chegaste e já estás a causar confusão e emoção.

Naquele segundo, teve a confirmação, imediata, de quem era o pai da criança. Em simultâneo subiram-lhe uns calores e uma vontade incontrolável e, a bem dizer, incompreensível de rir às gargalhadas. Mas, logo na primeira tentativa de esboçar um sorriso ténue, as dores foram insuportáveis e viu-se forçada a refrear a exteriorização dos seus pensamentos mais íntimos:

Se estas palermas ficaram impressionadas com a pila do meu filho, haviam de ver a do pai: aquilo é que se pode considerar um homem bem fornecido. Ainda bem que o Marcelino nunca quis fazer parte da equipa de futebol de velhos em que o meu Camilo joga à defesa. Para meu descanso, tanto quanto sei, nunca tiveram a oportunidade de tomar duche no mesmo balneário. Já estou a imaginar o Marcelino ao ver o outro: primeiro roído de inveja e, mais tarde, quando estivesse a ver o filho no banho, num momento de clarividência, a juntar dois mais dois (ou melhor: duas mais duas) e a ter um ataque de fúria.

E estava eu preocupada com a cor dos olhos. Nunca pensei que a pila fosse uma parte do corpo susceptível de tamanha influência e semelhança hereditária. Essa, pelo menos, sempre se pode ir ocultando com as fraldas. Aliás, bem posso estar descansada, se conheço o meu Marcelino, nunca mudará uma fralda na vida. Como ele sempre disse: “os filhos são das mães”.

No seguimento de todos os acontecimentos mais recentes, Maria Adelaide achou mais saudável seguir, com atenção redobrada, todo o processo de recepção de boas-vindas feito ao seu rebento por este mundo. Mas esquecera-se do "binóculo" no quarto, em cima da mesa-de-cabeceira. Bem podia esbugalhar ou semicerrar os olhos e esforçar-se: sem óculos, o resultado era nulo. A última imagem, desfocada, a que tivera acesso não a ajudou, por aí além, a descontrair-se. E para cúmulo do surrealismo que começava a conquistar toda a situação, ouviu uma voz esganiçada que dizia:

- Oh, já viram o pestinha do miúdo? Mas que grande pirilau. Nunca tinha visto nada assim. Vai, com certeza, ser o recordista deste Hospital. Uuiii! Fez-me chichi para o peito … malandrinho!

Depois desta cena disparatada, e algo irreal, adormeceu profundamente. Só passados uns dias é que veio a saber que ia provocando um ataque cardíaco ao anestesista: quando este a viu a dormir, completamente imóvel, pensou que ela tinha tido uma solipampa qualquer, derivada da anestesia que lhe dera (já um bocado à pressa). Segundo o que uma das enfermeira lhe contou mais tarde, o homem ainda tinha a mão que segurava no cigarro a tremer, mesmo muito tempo depois de ter confirmado que, afinal, ela se limitara a desmaiar de cansaço.

Quando recuperou os sentidos, bastante mais tarde, Maria Adelaide não se recordava de nada, inclusive nem tinha bem a certeza de já ter parido. Estava, consideravelmente, estremunhada. Mas quando tentou sentar-se na cama para descobrir onde se encontrava, as dores que a atacaram foram um recordador de memória extremamente eficaz. Tentou, mais uma vez, aquela proeza, tão complicada, de se erguer ligeiramente na cama, desta vez de forma mais suave. Lá conseguiu colocar as almofadas nas costas e na cabeça, de forma a ficar numa posição que equivalia, mais ou menos, a 30 graus de inclinação. Fechou os olhos e tentou aproveitar toda a descontracção característica daqueles raros momentos de silêncio. Aninhou-se o melhor que pôde entre as almofadas, obrigou-se a semicerrar os olhos e, por fim, passou para além do limiar da realidade.

Dormiu durante um bom par de horas: foi um sono agitado, mas sem pesadelos. O incómodo que lhe perturbou o sono, e os poucos sonhos, teve uma origem física, não só derivado das dores variadas que lhe agrediam o corpo, mas também das carências latentes que continuavam a consumi-la interiormente, quer estivesse a dormir ou acordada.

Ainda meio adormecida, começou por ouvir algumas vozes vozes longínquas : apenas um burburinho que ecoava à sua volta. Ainda teve uma esperança, semi-inconsciente, de que aqueles sons fizessem parte do sonho fantástico que tinha estado a viver. Mas, a pouco e pouco, as vozes foram ganhando corpo e aumentando de volume, até se tornarem incómodas. A certa altura, compreendeu que já devia estar instalada na cama do quarto (e não na sala de partos), pois sentiu que estava uma gente diferente por ali. Na expectativa de que, tal como nos sonhos, aquela gente se fosse embora, ou se esfumasse, pura e simplesmente, no ar, Maria Adelaide teimou em continuar de pálpebras bem coladas umas às outras. Só quando ouviu a voz sonora da cunhada é que começou a compenetrar-se de que ia mesmo ter de acordar (a bem ou a mal). Era impossível alguém dormir, ou unicamente descansar, com aquela voz a gritar aos ouvidos.

Espreitou por entre as pálpebras. Vislumbrou a figura familiar do irmão mais novo, o que já não era muito animador, mas o pior foi quando confirmou a presença da adorada e ruiva esposa. Maria Adelaide detestava a Maria de Lurdes:

Lurdes não, LOUrdes! Não embirro com ela, só acho que não passa de uma estúpida presunçosa. Não é que o meu irmão seja um génio. Mas, mesmo apesar de não ter sido bafejado por uma grande quantidade de massa encefálica, pelo menos, o Marcelo podia ter tido a sorte, ou a esperteza, de arranjar uma mulher porreira ou, no mínimo, normal. Esta tipa não existe. Não há dúvida que a alcunha que lhe pus assenta-lhe às mil maravilhas – Madame Lela.

Maria de Lourdes era a filha única de um casal corriqueiro que vivia no Barreiro. Os seus pais tinham um cafézinho que sempre lhes teria dado para viver bem repimpados, não fosse aquela filha adorada que lhes engolia todas as economias, nas coisas mais fúteis. Até conhecer e caçar o irmão de Maria Adelaide, tinha conseguido convencer os pais - o que para ela era canja, bastava uns beijinhos e abraços filiais dados na hora "H" – de que precisava desesperadamente de um apartamento em Lisboa, isto se quisessem que ela viesse a ser alguém. Não precisou de se chorar, nem muito nem pouco, para eles se deixarem ir em mais um dos seus egoísmos: bastou uma lágrima espremida a custo e uma fungadela infeliz. Hipotecaram o cafezito, que lhes servia de sustento, para poderem alugar um apartamento de 2 assoalhadas, bem no centro da capital, para a filha adorada. Facto chocante e risível, não fosse a miséria moral da situação.

Para se distrair e atrasar, o mais possível, o encontro fatal, Maria Adelaide meteu-se a recordar o dia em que conhecera a Maria de Lourdes:

Pode ser que se esqueçam de mim e se ponham a andar.

Lembro-me demasiado bem do dia em que a vi pela primeira vez. Fui uma estúpida inconsciente em dá-la a conhecer ao Marcelo: nessa altura, nem eu imaginei como, mais tarde, me viria a arrepender. Estava descansadinha na praia da Rainha, na Costa da Caparica, com o meu irmão e o grupo do costume, quando reparei numa miúda ruiva, espojada mesmo à nossa frente. Se calhar foram os seus cabelos cor de cenoura que me chamaram a atenção, ou talvez o simples facto de estar sozinha na praia. Como de costume, comentei a minha descoberta ao Marcelo. O tipo ficou doido com os cabelos cor de fogo da fulaninha, que mais tarde vim a confirmar serem pintadíssimos, e especialmente entusiasmado com o seu moderníssimo fato-de-banho: cor-de-rosa, com folhinhos brancos nos contornos das pernas bem torneadas e no decote algo ousado do peito. É claro que o palerma do Marcelo não teve nenhuma dificuldade em chegar à fala com ela, até porque passou todo o santo dia a mostrar-lhe os dotes de futebolista (e como é sobejamente sabido: as miúdas adoram os desportistas). Além disso, não é por ser meu irmão, mas o puto sempre foi o mais borracho do grupo: loirinho, de olhos azuis, muito escuros, e bom corpito.

O que ao início parecia não ir passar de mais um namorico breve e inconsequente, tornou-se de tal forma sério que, para mal dos meus pecados, acabou em casamento. Não sem a interveniência de alguma chantagem psicológica pelo caminho: umas gravidezes, que afinal não passaram de falsos alarmes, tentativas de suicídio forjadas, e cenas de ciúmes compugentes. Por fim, a tipa lá o conseguiu convencer que era a mulher ideal para ele.


A voz imparável e aguda da Maria de Lourdes não lhe permitiu continuar a divagar sobre o que quer que fosse. E por fim, teve mesmo de fazer a ligação à Terra, já que o barulho se estava a tornar impeditivo de qualquer tipo de pensamento minimamente coordenado. Abriu, muito ligeiramente, os olhos: como as crianças quando brincam às escondidas e tentam fazer batota. Tinha receio dos olhares que, com certeza, deviam estar colados à sua figura, ainda disforme, entornada em cima da cama da Maternidade. Maria Adelaide detestava que reparassem nela e sobretudo que a observassem. Nunca se achara nenhuma beleza, bem pelo contrário. Com a ajuda das repetidas ironias dos pais, relacionadas com os seus olhos demasiado pequenos e com a altura excessiva – na Escola e na rua rapidamente passara a ser conhecida pela dois metros - fora adquirindo a insegurança e a timidez que desde os 15 anos lhe vinha dando cabo vida.

Mas, se naquele momento pensava estar a ser o centro das atenções, depressa perdeu as veleidades. Estavam todos de rabo espetado, à volta do berço onde, certamente, dormia o seu bébé. Apesar da algaraviada que o rodeava, este mantinha-se espantosamente silencioso. Se calhar, o assombro do recém-nascido em relação às sombras de caras e corpos gigantes que o cercavam, era tal que nem conseguia emitir um mmm que fosse. Maria Adelaide ergueu-se o mais ligeira e silenciosa que lhe foi permitido - devido aos pontos que o médico achara conveniente dar-lhe após o parto-, para que não se virassem para ela as atenções ruidosas e incómodas.

Começou por tentar identificar os visitantes através dos rabos que conseguia vislumbrar. Rabos grandes e gordosos: os seus amados sogros, obviamente. Rabos metido em calças demasiado justas: os do seu irmão Marcelo e esposa e, ainda, um rabo mirrado e sem história: o daquela prima velha que, desde que o marido a deixara por uma com menos 20 anos, nunca largava a mãe do Marcelino. No que se referia ao rabo musculado do pai oficial da criança... :

Nem cheiro do Marcelino, como não podia deixar de ser. Pulha!

Interrompeu os seus pensamentos amargos para procurar o relógio. Reparou que continuava no seu pulso:

11 horas! A esta “hora da madrugada” ainda deve estar a curtir as primeiras horas de sono. Provavelmente, bem acompanhado. O mais certo é o meu lugar na cama estar a ser conspurcado e aquecido por alguma das jeitosas que o caçam lá pelos bares ranhosos onde ele vai sobrevivendo todas as noites. Nesta altura do campeonato, já nem estou certa de quem tenho mais pena e raiva: se dele, se de mim.

Obrigou a sua atenção a regressar ao quarto quando ouviu a voz desdenhosa da sogra a falar, ou melhor, a chicotear o marido. As suas deambulações mentais focaram-se nos pais do Marcelino. Os sogros de Maria Adelaide, cada vez mais, pareciam tirar algum gozo da situação caótica do filho, por muito que isso pudesse parecer incompreensível e inaceitável:

Gostam tanto de mim que nem querem saber o que realmente se passa com o filho. Preferem que ande por aí na putanhice, sempre é um motivo para dizerem mal da nora. Seja como for, a verdade é que, para eles, a culpa de tudo o que corre mal é sempre minha. Nem lhes passa por aquelas cabeças leves e maldosas que os maiores responsáveis pelo desvario e frustração do filho foram, e continuam a ser, eles próprios, dado que nunca lhe deram o mínimo apoio.

Dos cinco filhos, sempre tinham tratado o mais novo - o Marcelino - como sendo o menos inteligente e o menos capaz. E o pior de tudo era ele ter acatado, plenamente, essa situação. Nunca conseguira superar a condescendência do pai, nem o desinteresse egoísta, e por vezes maldoso, da mãe.

Começara por se orientar, consideravelmente bem, como treinador de andebol, mas passado algum tempo, e após diversas tentativas frustradas, o seu pai submetera-o a tais pressões e chantagens psicológicas que o levara a despedir-se, para se dedicar ao obscuro e deprimente negócio da família – funerais. Realmente, era um daqueles negócios que, por muitas oscilações que sofresse, nunca chegavam a ser preocupantes, pois, feliz ou infelizmente (dependia da perspectiva), os clientes estavam sempre assegurados.

Embora, à partida, na óptica das pessoas sãs da cabeça, a actividade desportiva seja uma ocupação mais agradável e alegre, e ocupe um espaço saudavelmente oposto à actividade funerária; para o Marcelino, o acto da morte alheia sempre o deixara, se não indiferente, pelo menos distante. E ainda bem, tendo em conta a sua, já duvidosa, sanidade mental.

No que se referia à velha prima Mimi: a sua história estava longe de ser brilhante ou modelar. Bem pelo contrário, chegava a ser susceptível de fazer corar um bom cristão. Nem tinha ponta por onde se pegasse. Sempre fora uma mulher dura e fria. Nunca quisera ter filhos e das vezes que lhe acontecera engravidar, arranjara forma de tratar do assunto com toda a limpeza. Da primeira vez saltara da mesa da sala, tantas vezes quantas as que foram necessárias para garantir um aborto natural; da segunda vez atirara-se pela escada abaixo e lá tivera o azar, ou castigo divino, de partir um braço. Mas livrara-se, mais uma vez, de um “peso” e evitara a fatídica e assustadora deformação do corpo. Desde que o marido, bem orientado na vida, com quem casara pura e simplesmente por interesse, a abandonara na esperança de encontrar uma mulher que quisesse ser a mãe dos seus filhos, andava incompreensivelmente colada à mãe do Marcelino. Talvez o elo que as unisse fosse a má-língua, ou a tendência natural de ambas para a maldade. Nisso eram peritas: umas autênticas trabalhólicas.

Precisamente na altura em que os pensamentos de Maria Adelaide iam, de vento em poupa, retomar o fio da meada onde tinham ficado, viram-se obrigados a travar e a meter pata a fundo. As suas adoradas dissertações mentais teriam de esperar por melhores momentos. O seu irmão, certamente cansado de olhar para um recém-nascido sem nada de particularmente interessante, já que estava de fralda e bem tapadinho, ou, então, já farto dos grunhidinhos histéricos da esposa, voltou-se para a cama onde jazia a irmã e dirigiu-se para ela com os compridos braços abertos, ansiosos por a estreitarem com força.

- Querida maninha. Parabéns. Tens ali um mini-Marcelo e pêras. Felizmente para ele sai aqui ao tio nos pontos físicos mais importante, se é que me faço entender...? Vai ser um autêntico valdevino, está garantido. Ainda me vai fazer concorrência com aquele corpito, o pestinha.

E ainda não viste tudo, querido maninho.

Grande parva! Estava para aqui com tantas paranóias que até me esqueci de como alguns homens gostam de disputar a fama de serem bem constituídos. Isto para não falar na importância que para os verdadeiros machos latinos têm as partes baixas. Coitados, chegam a ficar totalmente ofuscados por si próprios. Esses ingénuos ignoram, quase sempre, a qualidade em detrimento da quantidade. Pensam que as mulheres só se preocupam com o tamanho...

Escusado será dizer que, a partir daquele momento, se instalou, naquele quarto de Hospital, a confusão mais total que se possa imaginar. Não eram muitas pessoas, só que as que ali se encontravam tinham todas uma característica comum: uma sonoridade estridente.

Entre beijinhos, abraços e frases de circunstância soltas ao “Deus dará”, Maria Adelaide conseguiu sobreviver, a custo, fingindo ouvir e corresponder, sofrivelmente, ao que lhe era dito. Barbaridades incluídas.

Nem quis acreditar quando aquele maralhal se pôs a andar, uma hora e meia mais tarde. O mais assustador foi prometerem voltar no dia seguinte à mesma hora. Ficou desesperada:

Credo, estou tramada!


Quando ficou sozinha, olhou, pela primeira vez de óculos postos, para o bebé que continuava a dormir no berço: sereno e indiferente ao que se passava à sua volta. Continuou a observá-lo durante um longo momento. Por fim, teve de admitir para si própria:

Até que nem é nada feioso, apesar de ser meu filho. Qualquer pessoa vai partir do princípio lógico que o pirralho é filho do Marcelino. Até porque o Marcelino é que sempre foi considerado a “entidade bonita do casal”, (expressão preferida dos meus queridos sogros e da minha saudosa mãe). Tenho a certeza de que ele próprio se vai comportar como um pai babado pelo seu mini-macho. Nem vai querer saber da história do pirilau bem espetado e comprido do gaiato. E se reparar nesse pormenor, é bem capaz se sentir ainda mais orgulhoso.

Pegou no telefone e ligou, primeiro para casa, onde ninguém lhe respondeu, tal como, aliás, Maria Adelaide já esperava. Começou a falar, ignorando o sinal de chamada não correspondido. Inventou a conversa, que não passou de um monólogo, que gostaria de ter tido com a pessoa que supostamente deveria estar do outro lado do fio. Enquanto falava através do bucal do telefone, como se estivesse a contar confidências ao melhor amigo, ia observando o bébé deitado no minúsculo berço, à distância de um olhar. Sentiu as lágrimas a escorrerem-lhe pela cara. Queimavam-na. Depois, continuou a olhar para o seu filho e a emoção foi mais forte, desligou o telefone pousando o auscultador com violência:

Quero lá saber do Marcelino! O miúdo é bem bonito, tendo em conta que é um recém-nascido. Pensando melhor, até vai ser engraçado ter uma criança para cuidar. E pensar que ainda há umas horas atrás estava em pânico e com vontade de ceder a minha pele à primeira pessoa que a quisesse.

Quando marcara o número de telefone de casa, Maria Adelaide sabia, a priori, que nem o preguiçoso do marido, nem as suas adoradas enteadas, se iriam dar ao trabalho de atender o telefone; ele porque nem sequer iria acordar com os inúmeros toques estridentes do aparelho, elas porque, apesar dos seus meros 6 anos, tinham um feitio de cão e só atendiam as chamadas quando tinham a certeza de ser a maluca da mãe, isto é, nunca. Sendo assim, desistiu de tentar entrar em contacto com a sua família mais chegada e recostou-se na cama, disposta a disfrutar do amor maternal que começava a encher-lhe o peito e a ganhar-lhe a imaginação.

Ainda ligou para o Camilo que, como já vinha sendo hábito nos últimos meses, não atendeu. Até parecia que adivinhava quando era ela, se calhar reconhecia o toque do telefone. Desistiu e jurou nunca mais tentar, pelo menos enquanto estivesse no Hospital. Tinha de se impôr limites para as sensações de humilhação que se permitia sofrer. Sentiu, pela enésima vez na sua vida, que estava sozinha. Hesitou um segundo e depois rectificou o pensamento e o próprio sentimento:

A partir de hoje nunca mais vou estar sozinha, bem pelo contrário. Lá virá o dia em que darei o cuzinho e cinco tostões por conseguir estar repimpada, sem ninguém à volta, nem que seja por uma horita.

Estava farta de sobreviver mal e porcamente, como um pêndulo, entre dois homens que nada lhe davam, só a sugavam, cada um à sua maneira. Um que se tornara um bêbedo chato e desinteressante, que só sabia ir a casa para sacar o dinheiro do negócio soturno que legara à mulher. O outro, o Camilo, o pai presuntivo do seu filho (que naquele instante mamava desalmadamente agarrado à sua mama direita), era um homem já com mais 10 anos do que ela. Para dificultar as coisas, já por si só bastante complexas, era uma figura pública, bastante conhecida, principalmente no meio feminino, já que para além de solteiro era um borracho infernal. Limitava-se a telefonar-lhe esporadicamente, como se nada se tivesse passado entre eles. Durante um desses telefonemas relâmpago, chegara mesmo a dizer-lhe que nem sequer tinha tempo para almoçar com ela. E assim, com a maior das limpezas, e com toda a educação semântica que a língua portuguesa permitia, tinha posto para trás das costas o monte de promessas que lhe fizera... Maria Adelaide sentia-se obrigada a recordar um livro que lera, havia uns tempos, sobre as mentiras que se dizem na cama, no auge do desejo e da paixão:

Começo a achar que, afinal, o que ambos fizemos naqueles semi-encontros, não passou de movimentos acrobáticos de ginástica sexual. E que ginástica, já que os encontros decorreram, invariavelmente, dentro de um carro de Estado, enquanto o motorista, o fiel Alfredo, ia beber um café e comer um pastel de Belém. O filho da mãe até chegou ao cúmulo refinado de me pedir em casamento, logo que eu me livrasse do Marcelino e ele da mãezinha, doente terminal. A velhota é que tinha o dinheiro, e, aparentemente, não só não se separava dele, como ameaçava deserdá-lo se ele se casasse. Num desses encontros, até teve o desplante de me falar dos filhos que podiamos vir a ter quando, finalmente, estivessemos juntos. Filho da Mãe!

Quando deu por si grávida, a Maria Adelaide começou por ficar radiante: como qualquer futura mãe. Até porque havia já algum tempo que, sempre que se encontrava com o Camilo, sentia uns anseios suspeitos de ter um filho dele. Só passados os primeiros segundos de euforia é que o pânico começou a ganhar forma dentro dela. E o Marcelino? O que é que lhe ia dizer? Até porque o filho podia ser dele, se bem que tal fosse deveras improvável. Mas, a verdade era que nem ela podia ter a certeza absoluta:

Que raio de confusão desagradável em que me meti... Tenho de fazer um esforço e controlar as minhas dúvidas e angústias.

Por isso tudo, e mais alguma coisa esquecida, ali estava a Maria Adelaide sozinha, com o seu rebento bem enfronhado nas suas mamas carregadinhas de leite. A criança estava cá fora, era um rapaz aparentemente saudável e com tudo no sítio. E, pelo que já era sabido, bastante viril - um ponto forte para os rapazes. A partir dali, ela só tinha que ir dançando ao ritmo da música que lhe fosse surgindo pela frente e pela vida fora:

Não deve ser assim tão difícil sobreviver com uma criança. Já muitas mulheres o conseguiram antes de mim, porque não eu?!

No comments: