Saturday, April 21, 2007

A SAGA DO PILAS VII

No que diz respeito ao excelentíssimo senhor doutor Camilo – político de segunda e verdadeiro pai biológico do Pilas – nem queria ouvir falar que tinha um filho com a Maria Adelaide ou com quem quer que fosse. Isso representaria uma responsabilidade que ele nunca estaria disposto a acatar, pelos menos enquanto fosse socialmente semi-famoso e tivesse saída entre as mulheres. Assim, desde sempre se tentara esquivar da sua quota-parte na criação e desenvolvimento de “semelhante miúdo”.

Nos primeiros tempos, logo após o parto, Maria Adelaide, durante os períodos mais dolorosos em que era acometida de acessos de solidão e desespero, ainda tentara falar com o excelentíssimo senhor doutor Camilo: no telefone de casa, nunca ninguém a atendia; quando ligava para o escritório, limitava-se a conseguir ultrapassar a primeira etapa da telefonista, para, logo de seguida, esbarrar na secretária, a educada Dona Lucinda. O contacto entre as duas tornou-se de tal modo frequente que, a partir de certa altura, foram enriquecendo e apimentando as habituais frases de circunstância. A empatia descoberta por ambas foi revigorante para as suas vidas. Começaram por trocar receitas e piadas sobre os homens em geral e, por fim, já se arriscavam a criticar e a queixarem-se dos seus homens em particular, como velhas amigas. Criaram mesmo o hábito de irem almoçar juntas uma vez de quinze em quinze dias. Aproveitavam essas ocasiões para partilharem uma garrafinha de vinho e excederem-se nas dietas alimentares: terminando sempre as refeições bem regadas com o doce mais calórico do restaurante e o Porto mais caro da casa.

Nesses dias, a Dona Lucinda já não ia trabalhar da parte da tarde, nem seria capaz de o fazer, mesmo que quisesse: limitava-se a apanhar um táxi que a deixava à porta de casa. Entrava cambaleante, sempre na esperança de ser surpreendida pela presença do marido. Mas nunca teve essa sorte. Assim, descalçava-se logo no hall de entrada e, após se servir de um generoso wisky duplo ou triplo, ia-se despindo e beberricando a bebida áspera até atingir a casa-de-banho. Aí, tomava um duche quente, quase a escaldar, e, depois de ter depreciado e odiado até à exaustão o seu corpo avantajado, outrora roliço e apetitoso, despejava o resto que ainda pudesse haver no copo pela garganta abaixo e entornava-se na cama, toda nua, a sonhar com esbeltos príncipes e musculosos cavaleiros que a cortejavam e cobiçavam, arriscando as próprias vidas para a conquistarem. Nessas noites, perdida na semi-inconsciência que o álcool lhe oferecia, a Dona Lucinda chegava a conseguir sentir-se uma mulher feliz.

Para Maria Adelaide, essas tardes que seguiam os almoços de amena – e por vezes exaltada – cavaqueira, prolongavam-se de forma substancialmente diversa. Saía do restaurante habitual com a amiga atrelada ao seu braço esquelético, ambas servindo de bengala uma da outra. Normalmente, a companheira aguentava menos o vinho – embora fosse bastante mais avantajada –, pelo que era a Maria Adelaide que tinha de a ajudar a encontrar um táxi disponível e, sobretudo, a entrar dentro do carro sem que se magoasse. Invariavelmente, tinha de dar uma boa gorjeta ao homem para, de algum modo, tentar garantir que ela seria entregue no destino pretendido.

Depois do automóvel partir, Maria Adelaide ficava a observá-lo até o perder de vista numa curva qualquer. Muitas das vezes, mesmo após deixar de o ver, ali ficava, especada, a olhar para o ponto de fuga onde vira o taxi desaparecer no último segundo. Ausente da vida que passava, apressada, por ela. Perdida no labirinto da sua imaginação. Demorava alguns minutos a recompôr-se e a situar-se no espaço e no tempo. Quando, por fim, conseguia encontrar-se, tomava balanço e punha-se a andar em direcção a casa, sem grande energia. O percurso era longo. Mesmo assim, ia sempre a pé. Pelo caminho iam-lhe dando acessos de gula, incontroláveis, que nem ela compreendia bem porquê, já que não era de uma fome normal que se tratava: mais uma vontade, ou mesmo necessidade de comer, pura e simplesmente. Assim, entrava em todas as pastelarias por onde tinha o azar de passar e lá comia - ou pedia para embrulhar e ia comendo pelo caminho – qualquer coisa, de preferência um doce: um bolinho de côco numa, um chocolatinho noutra, uma bola de Berlim com creme na seguinte, e por aí adiante. Quando, finalmente, dobrava a esquina que desembocava na sua rua, já se sentia quase a rebentar. Se quisesse enfiar mais alguma coisa pela goela abaixo, só com a ajuda de um pau: como se fazia para engordar os gansos. Já a subir as escadas, tentava apressar-se para entrar em casa, mas a dilatação do estômago e a má-disposição impediam-na de acelerar o passo. Logo que conseguia acertar com a chave no buraco da fechadura, abria a porta de rompante, fechava-a com o pé, já em desequilíbrio, tal a ânsia de chegar à casa-de-banho. Nem precisava de enfiar os dedos na goela, os músculos da barriga – bem treinados – ajudavam-na e expelir todo o entulho que lhe obstruia a respiração. Havia dias em que pensava que o coração não ia aguentar e rebentaria a qualquer momento; havia outros dias em que pensava que os olhos lhe iam saltar das órbitas e afogar-se na sanita, no meio daquela mistela nojenta que fizera parte dela durante cerca de uma hora. Havia alturas em que a chama ácida que lhe queimava os interiores era tão intensa que Maria Adelaide receava ter o estômago rasgado. Fosse como fosse, a esperança era sempre a mesma: a de que alguém a salvasse daquela loucura. Se não, o melhor era morrer o mais depressa possível, antes que se lembrasse da existência do filho e se arrependesse mais uma vez.

O relacionamento e o entendimento mudo entre as duas estreitou-se ainda mais, numa ocasião deveras infeliz e que se veio a tornar muito desconcertante: a morte do marido da Dona Lucinda e as circunstâncias ridículas que a envolveram. Nesse dia ensombrado, e nos dias que se seguiram, Maria Adelaide foi de grande préstimo à amiga. Aliás, se não fosse ela – e sobretudo os seus conhecimentos no meio funerário – o caso teria sido, com certeza, assunto de interesse mórbido num qualquer pasquim de mau-gosto. Maria Adelaide tratou de todo o invulgar processo do funeral, desde o leito de morte até à última morada, uns palmos abaixo da terra, com uma consideração e conferindo-lhe uma dignidade que o homem, na realidade, não merecia.

Apesar da sua longa experiência, a própria Maria Adelaide ficou de tal forma impressionada com o inesperado desenrolar dos acontecimentos que nem teve coragem de contar toda a verdade sobre as circunstâncias da morte do marido à própria esposa. O seu receio de cair na tentação de partilhar com alguém uma experiência tão insólita como aquela era tão grande que se obrigou a jurar, sobre a Bíblia, silêncio absoluto sobre o assunto:

Nem eu sei bem como vou conseguir fazê-lo, mas macacos me mordam se não vou levar este segredo comigo para a cova. Coitada da Dona Lucinda. Se ela imaginasse o local e a situação, ou melhor a posição, em que o estupor do marido morreu, também ela se finava, só com o desgosto. Nunca pensei que as queixas que ela fazia do homem fossem assim tão reais, sempre achei que lhes devia dar um desconto.


Ainda me arrepio quando penso naquela malfadada noite. Lembro-me de tudo como se tivesse acontecido ontem. Já a noite tinha ficado bem para trás quando o telefone permanente da Agência tocou. Dei um salto e quase morri de susto, pois tinha acabado de adormecer no sofá do escritório, após despachar o meu pessoal para um serviço qualquer para no centro do país. Atendi. Demorei algum tempo a compreender que a voz do outro lado era a da Dona Lucinda. Aliás, o que chegou à minha memória baralhada foi a mistura de sentimentos alheados, entrecortados por soluços sofridos e palavras apenas balbuciadas. Após os primeiros momentos de confusão, lá consegui compreender que a voz deformada pertencia, de facto, à minha amiga e que ela me estava a dizer que o marrido morrera. Ao início fiquei impressionada, como é natural quando sabemos da morte de alguém conhecido, ou semi-conhecido, como neste caso. Quando tentei saber alguns pormenores sobre o sucedido, respondeu-me, já cheia de uma convicção que analisando agora com calma me surge um pouco falsa, que, segundo as testemunhas presentes (colegas e clientes), a tragédia acontecera num jantar de negócios que decorrera em Coimbra.

Até ali tudo aparentava estar dentro da normalidade (se é que se pode chamar normal uma pessoa morrer). O pior foi o que se seguiu: rezou a versão oficial que o “Senhor Engenheiro Hilário” se encontrava com o seu sócio, e alguns clientes, num jantar de negócios, na cidade de Coimbra. Após um bem regado ensopado de borrego (comida classificada no relatório do médico que assinou a certidão de óbito como pouco adequada para um jantar tardio), o Senhor Engenheiro Hilário sentira uma ligeira indisposição, e achara por bem retirar-se da mesa do restaurante, apresentando as suas maiores desculpas. Metera-se num táxi, visto não se sentir em condições de conduzir, e fora para o Hotel. A caminho do quarto revelara alguma dificuldade em equilibrar-se, facto confirmado, não só pelo recepcionista, mas sobretudo pelos acontecimentos posteriores. Deitara-se. A meio da noite (pelas 2 ou 3 da manhã) gritara por ajuda. O grito de agonia fora ouvido por uma senhora que, nesse preciso momento, se dirigia para o seu quarto, e que por mero acaso passava à porta do Senhor Engenheiro. Ao ouvir aquele pedido de socorro tão aflito que a “assustou sobremaneira”, abrira a porta do quarto de rompante. Nessa altura, nem pensara nas consequências do seu acto. Viu o corpo de um homem, estendido na cama, de boca escancarada a deitar a língua de fora a alguém. Perante aquela cena grotesca, a dita senhora, após os primeiros segundos de espanto e consternação, apercebera-se do quão imprópria e inconcebível seria encarada a presença de uma mulher, ali aos pés da cama de um homem que jazia de braços abertos, como Cristo na cruz. Antes que a referida senhora tivesse tido tempo de bater em retirada com a maior das discrições, fora “apanhada”, por assim dizer, pelo segurança do hotel que, tendo sido alertado por um hóspede anónimo, incomodado pelas “gargalhadas e sons obscenos de um quarto muito perto do dele”, se dirigira para aquele andar à procura dos importunos.

Outro facto curioso nessa história, foi quando a viúva me telefonou a pedir ajuda, às 6 da manhã, já o meu pessoal se encontrar a caminho de Coimbra, sem que eu soubesse que o serviço para o qual tinha sido contactada, uma meia-hora antes, tinha a ver com o marido da Dona Lucinda. Como os meus pais me ensinaram a não acreditar em coincidências, e como sou curiosa como o raio, acabei por explorar um pouco mais o assunto e descobrir que o director de alojamento do referido Hotel, onde se desenrolara esse episódio deplorável, conhecia bem o meu Marcelino. Acabei por considerar mais saudável não perder muito tempo a imaginar porquê, nem a esmiuçar mais essa linha de investigação. Fiz de conta que a razão para esta estranha coincidência era da inteira responsabilidade da pequenez do mundo. Não é mania do ser humano afirmar a toda a hora que o mundo é pequeno?

Para abreviar a história: os meus homens lá foram para Coimbra, na tentativa de encobrir, na medida do possível, os pormenores “obscenos” das inacreditáveis actividades rocambolescas do Senhor Engenheiro Hilário.

A pobre viúva, se tivesse vindo a saber que, na realidade, o marido morrera de ataque cardíaco a meio de uma brincadeira de alcova mais agerrida, com outra mulher, tinha-lhe dado um treco. Escusado será dizer que a referida senhora, solícita e boa samaritana, não era, nem mais nem menos do que a companheira habitual do marido da Dona Lucinda, sendo mesmo mais conhecida pelos clientes da empresa do Senhor Engenheiro do que a própria esposa.

Mais tarde (depois de se refazer da degradação em que participara), o Zé Carlos, encarregado da Agência Funerária, contou-me que quando entrara no quarto do hotel onde jazia o malogrado Senhor Engenheiro Hilário, ia tendo um colapso: o homem jazia todo nú em cima da cama, de braços abertos e um sorriso apalermado na cara, para não falar na língua já inchada que lhe saía da boca. O pior de tudo fora no final: para conseguir enfiar aquele corpo pesado e teso (ainda por cima de braços abertos) dentro das roupas austeras cedidas pela viúva. O melhor é nem entrar em pormenores técnicos...

E foi assim, depois desta cena ridícula e triste, que as duas mulheres foram ficando cada vez mais unidas pelos segredos que escondiam uma da outra, justificados pela amizade, e separadas pelas mentiras em que sabiam viver, justificadas pela vergonha, embora não as quisessem admitir.

Passados uns tempos desta triste novela, a Maria Adelaide veio a saber pela amiga que o Senhor Político de Segunda tinha sido apanhado pelas Finanças numa fraude fiscal menor. Não conseguiu evitar sentir-se, em parte, vingada pela cobardia e pulhice dele:

Foi muito bem feito. Também, já estava na altura de pagar alguma coisinha por conta dos seus pecados, mesmo sendo estes de ordem fraudulenta. Sempre foi um aldrabão. O que sempre o salvou foi ser um espertalhão e um quebra-corações profissional. Ainda me custa pensar nele. O marmelo sempre foi, e sempre será, bom como o milho.

À custa de uma macacada que incluia a fuga aos impostos, o Doutor Camilo vira-se forçado a abandonar o cargo público que à data detinha. E para se aguentar à tona da adorada sociedade que ameaçava ostracizá-lo, viu-se na contingência de casar como mandava a etiqueta da hipocrisia. Escolheu, então, uma menina bem, da chamada alta burguesia (já que a nobreza por essas alturas andava na mó de baixo) e, principalmente, com uma excelente qualidade: muito rica. Ainda para atrapalhar mais a sua vida: a tal mãezinha, doente havia séculos, nunca mais “entregava a alma ao Criador”. Aliás, por aquele andar, ameaçava durar mais tempo do que próprio filho. Para a manter satisfeita e com os cordões da bolsa abertos, arranjara uma empregada a tempo inteiro para cuidar dela, o que lhe custava um balúrdio:

São os ossos do ofício, o que é que hei-de fazer à vida? Esperar. Só me resta mesmo esperar. E é bom que tenha paciência para o fazer, se é que quero ver alguma coisa dali.

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