Friday, April 27, 2007

A SAGA DO PILAS VIII

Alguns meses após o faustoso e noticiado casamento, e quando já não arriscava levantar suspeitas, a natureza valdevina do Senhor Doutor não se conseguiu mais conter dentro de uma pele de marido atencioso e fiel e regressou às suas actividades noctívagas. Lançou-se primeiro a medo, mas depressa se desleixou e, em crescendo, atingiu toda a sua plenitude de engatatão. O cúmulo do desplante foi a sua tentativa de reaproximação a Maria Adelaide, sendo o seu objectivo final, reconquistar o lugar no seu coração, ou mais correctamente: reocupar o lugar do banco de trás do seu carro.

Como um D. Juan experiente que se achava, começou por atulhá-la de flores e presentes, pensando que dessa forma a faria esquecer as partes negras do passado e ansiar pelas ardentes cambalhotas que davam os dois juntos. Quando se lhe esgotou a paciência e chegou à conclusão que daquela maneira, simples, mas dispendiosa, não ia lá, pediu conselho ao seu melhor amigo, um reconhecido psiquiatra da praça, que o aconselhou a optar pela aproximação, temporária, do filho comum (que, a bem dizer, ele nunca reconhecera como seu).

Assim, embora não correspondesse minimamente à verdade, com frases quentes e lágrimas nos olhos, Camilo convenceu a Maria Adelaide de que estava arrependido de todo aquele tempo de afastamento entre ele e o filho de ambos e, por fim, conseguiu que ela o deixasse levar o miúdo a lanchar, numa tentativa de que, pelo menos, se conhecessem. E ela que, desde sempre, e sobretudo, desde que fora mãe, se sentia carente e muito sozinha, acedeu a esse pedido e, rapidamente, se começou a aperceber de que corria sérios riscos de deslizar para a tentação. Resultado, todas as noites fazia a sua ginástica, a dobrar, e tomava um duche frio, antes de ir para a cama, na esperança de arrefecer o desejo que, cada vez mais, a ia invadindo.

Apesar de sonhar e ambicionar uma vida igual à de algumas das personagens das novelas que se habituara a ver todas as noites, ainda conseguia ter alguma presença de espírito para admitir para si própria que os finais felizes, geralmente, só aconteciam nos filmes americanos e nos romances. A vida, tal como ela permitia ser vivida, não era pêra doce. Todos os seus pensamentos entraram em colisão uns com os outros. E, por fim, lá se auto-convenceu de que dar a hipótese ao Camilo de conhecer o filho era humano e saudável.

Como seria de esperar: o primeiro e único encontro entre pai, político e filho, conhecido por Pilas, foi logo para abrir, e fechar, um completo desastre. Não só o Camilo não estava minimamente preparado para lidar com uma criança (fosse ela qual fosse), como nem sequer achou que devesse fazer um esforço, mesmo que pequeno, para ultrapassar a cortina da idade que, só por si, já era densa. Na sua consciência de classe e sobranceria, limitou-se a fazer de corpo presente numa situação que exigia, no mínimo, o coração. Convenceu-se de que o miúdo é que tinha de arranjar maneira de chegar a ele, já que não passava de um puto. De salientar que o Camilo era daqueles que tem um primeiríssimo nome de Doutor; isto para não falar na sensação de importância que lhe dava o facto de se intitular e considerar um dos políticos importantes da praça.

Por seu lado, no dia do fatídico encontro, o Pilas não fazia a mais pálida ideia de quem era o Doutor Camilo com quem tinha de ir lanchar, e a bem dizer, nem lhe interessava. Vivia à farta os seus 10 anos, sentindo-se o rei da paróquia. Dadas as circunstâncias sociais e “ambientais”, o seu linguajar era bastante livre (para não dizer chocante). Assim, nem a vontade interesseira de, através da conquista do filho, reconquistar a mãe fez com que o Senhor Doutor tivesse vontade de tentar uma segunda abordagem. Até o local do encontro parecia ter sido escolhido a dedo, com o objectivo daquilo não resultar: a Ferrari.

Thursday, April 26, 2007

DERIVAÇÕES XI

a partir do texto O Lodo de Alfredo Cortêz.

veste certo esforço em enfiar uma agulha num espelho.

diz – passo aqui os dias e as noites com a casa toda,
........ com as marcas na ponta das unhas,
........ a sacudir a cinza com o dedo mínimo.
diz – eu vomito o resto no café aqui da esquina,
........ no meio das gargalhadas de todos.
diz – arremedar a voz da canalha.

o xaile está pendurado por baixo da escada.
ele lambe o cigarro e vai sentar-se numa cadeira
à proa.
vai aos soluços o pano e, depois,
a mesma disposição de todas as coisas.
passos na escada – pausa.

diz – é que tenho muita pena que seja tão desigual.
........ aprendi na leitura dos primeiros livros que as mães
........ são como santas,
........ num campo grande cheio de sol,
........ e o sol pica.

diz – pode lá acreditar-se na perseguição das coisas
........ que não têm vida.

só se faz luz na sala depois de descer completamente o pano.

Monday, April 23, 2007

CINCO PEQUENAS HISTÓRIAS, EM LISBOA. (I)

E por si se move!

Com o ligeiro tremor de terra que abalara a cidade de Lisboa, a perna de presunto desprendera-se da cunha que a sustinha no ar - um pouso para moscas. Na sua queda rasgara o espaço, e como uma guilhotina decapitara o taberneiro Pépe, cuja cabeça, rolando pela banca até cair para dentro da panela ebuliente, forcejara com a língua, nariz e dentes, para alterar a rota da fatídica trajectória. Pouco depois caíram as cebolas, que entrelaçadas tinham pendido também na trave arqueada.
Notificando o insólito caso de acefalia às autoridades, a mulher serviu, nessa noite ao jantar, sopa a amigos e familiares.

RETRATO DE SIROB NAIV


Saturday, April 21, 2007

A SAGA DO PILAS VII

No que diz respeito ao excelentíssimo senhor doutor Camilo – político de segunda e verdadeiro pai biológico do Pilas – nem queria ouvir falar que tinha um filho com a Maria Adelaide ou com quem quer que fosse. Isso representaria uma responsabilidade que ele nunca estaria disposto a acatar, pelos menos enquanto fosse socialmente semi-famoso e tivesse saída entre as mulheres. Assim, desde sempre se tentara esquivar da sua quota-parte na criação e desenvolvimento de “semelhante miúdo”.

Nos primeiros tempos, logo após o parto, Maria Adelaide, durante os períodos mais dolorosos em que era acometida de acessos de solidão e desespero, ainda tentara falar com o excelentíssimo senhor doutor Camilo: no telefone de casa, nunca ninguém a atendia; quando ligava para o escritório, limitava-se a conseguir ultrapassar a primeira etapa da telefonista, para, logo de seguida, esbarrar na secretária, a educada Dona Lucinda. O contacto entre as duas tornou-se de tal modo frequente que, a partir de certa altura, foram enriquecendo e apimentando as habituais frases de circunstância. A empatia descoberta por ambas foi revigorante para as suas vidas. Começaram por trocar receitas e piadas sobre os homens em geral e, por fim, já se arriscavam a criticar e a queixarem-se dos seus homens em particular, como velhas amigas. Criaram mesmo o hábito de irem almoçar juntas uma vez de quinze em quinze dias. Aproveitavam essas ocasiões para partilharem uma garrafinha de vinho e excederem-se nas dietas alimentares: terminando sempre as refeições bem regadas com o doce mais calórico do restaurante e o Porto mais caro da casa.

Nesses dias, a Dona Lucinda já não ia trabalhar da parte da tarde, nem seria capaz de o fazer, mesmo que quisesse: limitava-se a apanhar um táxi que a deixava à porta de casa. Entrava cambaleante, sempre na esperança de ser surpreendida pela presença do marido. Mas nunca teve essa sorte. Assim, descalçava-se logo no hall de entrada e, após se servir de um generoso wisky duplo ou triplo, ia-se despindo e beberricando a bebida áspera até atingir a casa-de-banho. Aí, tomava um duche quente, quase a escaldar, e, depois de ter depreciado e odiado até à exaustão o seu corpo avantajado, outrora roliço e apetitoso, despejava o resto que ainda pudesse haver no copo pela garganta abaixo e entornava-se na cama, toda nua, a sonhar com esbeltos príncipes e musculosos cavaleiros que a cortejavam e cobiçavam, arriscando as próprias vidas para a conquistarem. Nessas noites, perdida na semi-inconsciência que o álcool lhe oferecia, a Dona Lucinda chegava a conseguir sentir-se uma mulher feliz.

Para Maria Adelaide, essas tardes que seguiam os almoços de amena – e por vezes exaltada – cavaqueira, prolongavam-se de forma substancialmente diversa. Saía do restaurante habitual com a amiga atrelada ao seu braço esquelético, ambas servindo de bengala uma da outra. Normalmente, a companheira aguentava menos o vinho – embora fosse bastante mais avantajada –, pelo que era a Maria Adelaide que tinha de a ajudar a encontrar um táxi disponível e, sobretudo, a entrar dentro do carro sem que se magoasse. Invariavelmente, tinha de dar uma boa gorjeta ao homem para, de algum modo, tentar garantir que ela seria entregue no destino pretendido.

Depois do automóvel partir, Maria Adelaide ficava a observá-lo até o perder de vista numa curva qualquer. Muitas das vezes, mesmo após deixar de o ver, ali ficava, especada, a olhar para o ponto de fuga onde vira o taxi desaparecer no último segundo. Ausente da vida que passava, apressada, por ela. Perdida no labirinto da sua imaginação. Demorava alguns minutos a recompôr-se e a situar-se no espaço e no tempo. Quando, por fim, conseguia encontrar-se, tomava balanço e punha-se a andar em direcção a casa, sem grande energia. O percurso era longo. Mesmo assim, ia sempre a pé. Pelo caminho iam-lhe dando acessos de gula, incontroláveis, que nem ela compreendia bem porquê, já que não era de uma fome normal que se tratava: mais uma vontade, ou mesmo necessidade de comer, pura e simplesmente. Assim, entrava em todas as pastelarias por onde tinha o azar de passar e lá comia - ou pedia para embrulhar e ia comendo pelo caminho – qualquer coisa, de preferência um doce: um bolinho de côco numa, um chocolatinho noutra, uma bola de Berlim com creme na seguinte, e por aí adiante. Quando, finalmente, dobrava a esquina que desembocava na sua rua, já se sentia quase a rebentar. Se quisesse enfiar mais alguma coisa pela goela abaixo, só com a ajuda de um pau: como se fazia para engordar os gansos. Já a subir as escadas, tentava apressar-se para entrar em casa, mas a dilatação do estômago e a má-disposição impediam-na de acelerar o passo. Logo que conseguia acertar com a chave no buraco da fechadura, abria a porta de rompante, fechava-a com o pé, já em desequilíbrio, tal a ânsia de chegar à casa-de-banho. Nem precisava de enfiar os dedos na goela, os músculos da barriga – bem treinados – ajudavam-na e expelir todo o entulho que lhe obstruia a respiração. Havia dias em que pensava que o coração não ia aguentar e rebentaria a qualquer momento; havia outros dias em que pensava que os olhos lhe iam saltar das órbitas e afogar-se na sanita, no meio daquela mistela nojenta que fizera parte dela durante cerca de uma hora. Havia alturas em que a chama ácida que lhe queimava os interiores era tão intensa que Maria Adelaide receava ter o estômago rasgado. Fosse como fosse, a esperança era sempre a mesma: a de que alguém a salvasse daquela loucura. Se não, o melhor era morrer o mais depressa possível, antes que se lembrasse da existência do filho e se arrependesse mais uma vez.

O relacionamento e o entendimento mudo entre as duas estreitou-se ainda mais, numa ocasião deveras infeliz e que se veio a tornar muito desconcertante: a morte do marido da Dona Lucinda e as circunstâncias ridículas que a envolveram. Nesse dia ensombrado, e nos dias que se seguiram, Maria Adelaide foi de grande préstimo à amiga. Aliás, se não fosse ela – e sobretudo os seus conhecimentos no meio funerário – o caso teria sido, com certeza, assunto de interesse mórbido num qualquer pasquim de mau-gosto. Maria Adelaide tratou de todo o invulgar processo do funeral, desde o leito de morte até à última morada, uns palmos abaixo da terra, com uma consideração e conferindo-lhe uma dignidade que o homem, na realidade, não merecia.

Apesar da sua longa experiência, a própria Maria Adelaide ficou de tal forma impressionada com o inesperado desenrolar dos acontecimentos que nem teve coragem de contar toda a verdade sobre as circunstâncias da morte do marido à própria esposa. O seu receio de cair na tentação de partilhar com alguém uma experiência tão insólita como aquela era tão grande que se obrigou a jurar, sobre a Bíblia, silêncio absoluto sobre o assunto:

Nem eu sei bem como vou conseguir fazê-lo, mas macacos me mordam se não vou levar este segredo comigo para a cova. Coitada da Dona Lucinda. Se ela imaginasse o local e a situação, ou melhor a posição, em que o estupor do marido morreu, também ela se finava, só com o desgosto. Nunca pensei que as queixas que ela fazia do homem fossem assim tão reais, sempre achei que lhes devia dar um desconto.


Ainda me arrepio quando penso naquela malfadada noite. Lembro-me de tudo como se tivesse acontecido ontem. Já a noite tinha ficado bem para trás quando o telefone permanente da Agência tocou. Dei um salto e quase morri de susto, pois tinha acabado de adormecer no sofá do escritório, após despachar o meu pessoal para um serviço qualquer para no centro do país. Atendi. Demorei algum tempo a compreender que a voz do outro lado era a da Dona Lucinda. Aliás, o que chegou à minha memória baralhada foi a mistura de sentimentos alheados, entrecortados por soluços sofridos e palavras apenas balbuciadas. Após os primeiros momentos de confusão, lá consegui compreender que a voz deformada pertencia, de facto, à minha amiga e que ela me estava a dizer que o marrido morrera. Ao início fiquei impressionada, como é natural quando sabemos da morte de alguém conhecido, ou semi-conhecido, como neste caso. Quando tentei saber alguns pormenores sobre o sucedido, respondeu-me, já cheia de uma convicção que analisando agora com calma me surge um pouco falsa, que, segundo as testemunhas presentes (colegas e clientes), a tragédia acontecera num jantar de negócios que decorrera em Coimbra.

Até ali tudo aparentava estar dentro da normalidade (se é que se pode chamar normal uma pessoa morrer). O pior foi o que se seguiu: rezou a versão oficial que o “Senhor Engenheiro Hilário” se encontrava com o seu sócio, e alguns clientes, num jantar de negócios, na cidade de Coimbra. Após um bem regado ensopado de borrego (comida classificada no relatório do médico que assinou a certidão de óbito como pouco adequada para um jantar tardio), o Senhor Engenheiro Hilário sentira uma ligeira indisposição, e achara por bem retirar-se da mesa do restaurante, apresentando as suas maiores desculpas. Metera-se num táxi, visto não se sentir em condições de conduzir, e fora para o Hotel. A caminho do quarto revelara alguma dificuldade em equilibrar-se, facto confirmado, não só pelo recepcionista, mas sobretudo pelos acontecimentos posteriores. Deitara-se. A meio da noite (pelas 2 ou 3 da manhã) gritara por ajuda. O grito de agonia fora ouvido por uma senhora que, nesse preciso momento, se dirigia para o seu quarto, e que por mero acaso passava à porta do Senhor Engenheiro. Ao ouvir aquele pedido de socorro tão aflito que a “assustou sobremaneira”, abrira a porta do quarto de rompante. Nessa altura, nem pensara nas consequências do seu acto. Viu o corpo de um homem, estendido na cama, de boca escancarada a deitar a língua de fora a alguém. Perante aquela cena grotesca, a dita senhora, após os primeiros segundos de espanto e consternação, apercebera-se do quão imprópria e inconcebível seria encarada a presença de uma mulher, ali aos pés da cama de um homem que jazia de braços abertos, como Cristo na cruz. Antes que a referida senhora tivesse tido tempo de bater em retirada com a maior das discrições, fora “apanhada”, por assim dizer, pelo segurança do hotel que, tendo sido alertado por um hóspede anónimo, incomodado pelas “gargalhadas e sons obscenos de um quarto muito perto do dele”, se dirigira para aquele andar à procura dos importunos.

Outro facto curioso nessa história, foi quando a viúva me telefonou a pedir ajuda, às 6 da manhã, já o meu pessoal se encontrar a caminho de Coimbra, sem que eu soubesse que o serviço para o qual tinha sido contactada, uma meia-hora antes, tinha a ver com o marido da Dona Lucinda. Como os meus pais me ensinaram a não acreditar em coincidências, e como sou curiosa como o raio, acabei por explorar um pouco mais o assunto e descobrir que o director de alojamento do referido Hotel, onde se desenrolara esse episódio deplorável, conhecia bem o meu Marcelino. Acabei por considerar mais saudável não perder muito tempo a imaginar porquê, nem a esmiuçar mais essa linha de investigação. Fiz de conta que a razão para esta estranha coincidência era da inteira responsabilidade da pequenez do mundo. Não é mania do ser humano afirmar a toda a hora que o mundo é pequeno?

Para abreviar a história: os meus homens lá foram para Coimbra, na tentativa de encobrir, na medida do possível, os pormenores “obscenos” das inacreditáveis actividades rocambolescas do Senhor Engenheiro Hilário.

A pobre viúva, se tivesse vindo a saber que, na realidade, o marido morrera de ataque cardíaco a meio de uma brincadeira de alcova mais agerrida, com outra mulher, tinha-lhe dado um treco. Escusado será dizer que a referida senhora, solícita e boa samaritana, não era, nem mais nem menos do que a companheira habitual do marido da Dona Lucinda, sendo mesmo mais conhecida pelos clientes da empresa do Senhor Engenheiro do que a própria esposa.

Mais tarde (depois de se refazer da degradação em que participara), o Zé Carlos, encarregado da Agência Funerária, contou-me que quando entrara no quarto do hotel onde jazia o malogrado Senhor Engenheiro Hilário, ia tendo um colapso: o homem jazia todo nú em cima da cama, de braços abertos e um sorriso apalermado na cara, para não falar na língua já inchada que lhe saía da boca. O pior de tudo fora no final: para conseguir enfiar aquele corpo pesado e teso (ainda por cima de braços abertos) dentro das roupas austeras cedidas pela viúva. O melhor é nem entrar em pormenores técnicos...

E foi assim, depois desta cena ridícula e triste, que as duas mulheres foram ficando cada vez mais unidas pelos segredos que escondiam uma da outra, justificados pela amizade, e separadas pelas mentiras em que sabiam viver, justificadas pela vergonha, embora não as quisessem admitir.

Passados uns tempos desta triste novela, a Maria Adelaide veio a saber pela amiga que o Senhor Político de Segunda tinha sido apanhado pelas Finanças numa fraude fiscal menor. Não conseguiu evitar sentir-se, em parte, vingada pela cobardia e pulhice dele:

Foi muito bem feito. Também, já estava na altura de pagar alguma coisinha por conta dos seus pecados, mesmo sendo estes de ordem fraudulenta. Sempre foi um aldrabão. O que sempre o salvou foi ser um espertalhão e um quebra-corações profissional. Ainda me custa pensar nele. O marmelo sempre foi, e sempre será, bom como o milho.

À custa de uma macacada que incluia a fuga aos impostos, o Doutor Camilo vira-se forçado a abandonar o cargo público que à data detinha. E para se aguentar à tona da adorada sociedade que ameaçava ostracizá-lo, viu-se na contingência de casar como mandava a etiqueta da hipocrisia. Escolheu, então, uma menina bem, da chamada alta burguesia (já que a nobreza por essas alturas andava na mó de baixo) e, principalmente, com uma excelente qualidade: muito rica. Ainda para atrapalhar mais a sua vida: a tal mãezinha, doente havia séculos, nunca mais “entregava a alma ao Criador”. Aliás, por aquele andar, ameaçava durar mais tempo do que próprio filho. Para a manter satisfeita e com os cordões da bolsa abertos, arranjara uma empregada a tempo inteiro para cuidar dela, o que lhe custava um balúrdio:

São os ossos do ofício, o que é que hei-de fazer à vida? Esperar. Só me resta mesmo esperar. E é bom que tenha paciência para o fazer, se é que quero ver alguma coisa dali.

Sunday, April 15, 2007

A SAGA DO PILAS VI

A ATRIBULADA INFÂNCIA DO PILAS.

Os meses, e alguns anos, foram passando pela vida da Maria Adelaide e de todos os que a rodeavam. O seu filho foi crescendo, e com ele a fama do seu atributo específico e bem localizado que o tornara tão falado logo no dia em que nasceu. Quando regressara a casa, após o parto sui generis, bem tentara ocultar a característica viril do filho. Mas depressa verificou que os seus esforços eram inúteis, pois, estranhamente, já toda a gente do bairro sabia que o novíssimo habitante das imediações era especial de corrida.

Como a decisão de esconder não resultou (como, aliás está mais do que provado que nunca resulta) Maria Adelaide reformulou os seus esforços e passou, então, a tentar desviar a atenção das vizinhas e a desdramatizar o fenómeno peculiar, com receio de que isso viesse a condicionar, ou mesmo a conduzir a vida futura do seu filho. Nessa cruzada, não conseguiu recrutar o apoio do Marcelino, pois este, como assumido pai que era, na sua ignorância e orgulho, parecia fazer questão de evidenciar o apêndice comprido e espetado do miúdo, sempre que tinha uma oportunidade. E assim, como não podia deixar de ser, a fama do rapaz depressa se propagou, desde o apertado bairro onde viviam, até à escola. Num abrir e fechar de olhos, colaram-lhe uma alcunha aumentativa. Passou, então, a ser conhecido pelo Pilas. Essa alcunha assentou-lhe tão bem que grande parte das pessoas, miúdos e graúdos, que o iam conhecendo, nunca chegaram a saber qual era o seu verdadeiro nome de baptismo. Pilas nasceu e Pilas foi ficando.

Felizmente, o Pilas nunca se mostrou incomodado ou ofendido, e até adorava, para não dizer que venerava, a sua alcunha. Dava-lhe a sensação de ser verdadeiramente importante. Primeiro, na inocência da sua tenra idade, começou por se achar especial por ter o único nome que, ao ser mencionado, provocava caras com expressões engraçadas. Mais tarde – mas muito precocemente - já com consciência da sua aparente superioridade física, orgulhava-se do corpo que tinha. Criou o hábito de passar horas ao espelho, a apreciar e a cuidar do seu aspecto. Sem que ninguém lho tivesse ensinado, no final, conseguia dar sempre à sua figura um aspecto de elegante desleixo: bem ao gosto de algumas das “suas miúdas”.

Quando ainda só rondava os sete anos, o Pilas descobriu, sem querer, que tinha a capacidade de chocar as miúdas mais velhas. Naquela altura não chegou sequer a compreender muito bem porquê, mas a verdade era que sempre que o viam passar, olhavam para ele e cochichavam entre si, com sorrizinhos patetas. Como uma criançola que ainda era, nem se preocupou em explorar muito a fundo as razões daquele interesse. As diferentes reacções agradavam-lhe, pura e simplesmente. Junto das suas coleguinhas e vizinhas sentia-se como se fosse um artista famoso. Já que as miúdas tanto pareciam gostar, acabou por conceber um passatempo “super-fixe”: mostrar-lhes a sua comprida pilinha – que naquela idade mais parecia uma esferográfica-. As mais velhas, que já conheciam os dotes fora do comum do rapaz, mais tarde ou mais cedo, voltavam a procurá-lo para uma segunda exibição – de preferência em câmara lenta –, altura em que deixavam escapar falsos risinhos envergonhados. Sem, no entanto, despregarem os olhos da “estrela da companhia”. As outras, que eram apanhadas de surpresa, sem qualquer tipo de pré-aviso, fitavam-no de olhos bem arregalados e fugiam a sete pés. Algumas da idade dele, poucas, chegaram mesmo a ganhar coragem para se queixarem às respectivas mães, de lágrimas nos olhos e vozinhas aos tremeliques. Após a exibição impudica do Pilas as pobres meninas eram acometidas de violentos pesadelos e gemidos compulsivos.

Essa tendência precoce para a exibição, em vez de abrandar, foi-se acentuando com a idade. Aos 10 anos, os seus ataques de “expressividade física”, embora tivessem um intuito especialmente personalizado de satisfação pessoal, eram susceptíveis de acontecer em qualquer lugar ou situação: na padaria quando, a pedido da mãe, ia comprar pão fresco; na sapataria do senhor Saraiva quando tinha a sorte de se encontrar com alguma vizinha mais desinibida e marota; na mercearia bolorenta da embirrante dona Augusta; na escola, ou mesmo na obscura loja da funerária dos pais. Para tanto, bastava que alguma miúda gira o interpelasse, inocentemente, ou o provocasse, propositadamente. De salientar que quando se utiliza a designação de miúda, é uma força de expressão, já que se está a abranger uma faixa etária extremamente alargada, quer para baixo, quer para cima. Até porque uma das situações em que o Pilas mais se sentia brilhar era quando estava sozinho na funerária e tinha a sorte de lhe entrar pela porta alguma viúva mais arreada. Nessas alturas é que ele justificava, em pleno, o direito que tinha à sua alcunha. Além de que se divertia, à parva, como um simples puto traquinas que era.

O pior foi que, à custa das suas brincadeiras de mau-gosto, muitas clientes fugiram, receando estar a contratar os serviços de alguma comunidade de hábitos necrófilos ou de cultos satânicos. Nessas alturas, a sorte da Maria Adelaide era ser conhecida lá pelo bairro, havia já uns bons pares de anos. O azar do Pilas era a mãe ter a mão pesada e não se poupar a treiná-la no seu rabo que ficava vermelho das chineladas que ela lhe dava sempre que, devido a uma brevíssima ausência sua, via uma cliente a sair esbaforida da loja, com o credo na boca, e um pensamento impróprio na imaginação.

Maria Adelaide justificava, no seu íntimo, estas brincadeiras disparatadas do filho com a falta da figura do pai lá por casa. Ela bem se esforçava por impôr alguma disciplina àquele miúdo irrequieto, mas tinha grandes dificuldades, já que, embora adorasse a mãe, o Pilas pouca importância dava às suas conversas “eruditas” ou aos castigos que ela lhe aplicava.

Derivações X

a partir do texto A Missão de F. de Castro.

mesa,
poliedro
distendendo o busto no recinto e nas abóbadas.
em cima da mesa, não metessem eles por outro atalho
e iriam de escarpa em escarpa,
de aresta em aresta,
onde um aponte emergia como se falasse para a grande pedra
............................................................ laminada.
ninguém se movia de um extremo ao outro da mesa,
tantos olhos entretidos com o jogo dos dedos sobre a mesa,
batendo em graves paredes antigas,
numa sepultura esquecida,
sepultada na profundidade dos alicerces.
havia de sumário
a nudez das coisas
os passos
o rumor da água.

Sunday, April 8, 2007

A SAGA DO PILAS V

- Agora, força! Faça força, mulher! Então, está a dormir…? O que raio é que deram a esta mulher, um sedativo ou quê?!

Maria Adelaide foi despertada, violentamente, das suas divagações, pela voz dura e apressada do médico que espreitava, alternada e ansiosamente, ora para a sua cara, através das pernas escancaradas, ora para baixo (escusado será dizer para onde), à espera de ver surgir os pés do bebé que parecia não querer sair, nem por nada. O puto lá devia saber o que fazer de si próprio, e enquanto podia ia optando pelo local onde se sentia mais confortável: dentro da barriguinha aconchegante e protectora da mãe. Sempre devia ser melhor do que dar de caras, ou melhor: de pés, com a tromba feiosa do médico.

De repente, foi atingida por outro espasmo doloroso que, no entanto, não passou, mais uma vez, de uma ameaça frustrada, posto que ela não conseguiu coordenar, a tempo, a força que tinha feito com a ordem dada pelos músculos doridos da sua barriga e pela voz furiosa do médico. Ficou esgotada e sem acção. Prostrada. Durante os minutos seguintes foi o caos geral: uns gritavam para a espevitar, dando-lhe ordens secas e agrestes, outros tentavam manter alguma sobriedade, esforçando-se por descontrair a futura mãe, dando-lhe palmadinhas conciliadoras na mão. Nos escassos momentos de paz e silêncio que seguiam todo esse espectáculo, ficava a pairar no ar, em suspenso, o constrangimento da excitação anterior.

Depois desta tentativa frustrada de expulsão, Maria Adelaide (re)caiu nas introspecções, depreciativas e apreciativas, sobre a sua vida. Ainda hesitou em continuar por ali a ouvir a loucura que a rodeava ou desistir, pura e simplesmente. Estava tão profundamente cansada de tudo. Mas, apesar da confusão da sua vida, o coração de mãe bateu mais alto. Por fim, caiu na realidade: aquela criança – que era o seu filho - ia nascer, independentemente de quem fosse o seu pai biológico.

Desde que não fosse excessivamente diferente, tinha a certeza que bastava dizer ao Marcelino onde assinar o registo da criança, sem grandes nervos, nem entusiasmos, para, logo, ele se comprometer a confirmar, por escrito, a sua orgulhosa paternidade. Tal como dizia o seu sogro: “homem que é homem tem de fazer um filho à sua gaja”. Mesmo assim, para evitar aborrecimentos, o ideal seria que nascesse com os olhos azuis do “pai”. Lembrou-se que lera numa revista qualquer que os bebés nasciam sempre com os olhos azulados e que só lá para os três meses é que a cor se começava a definir. Concentrando-se neste pensamento, Maria Adelaide tentou descontrair-se:

Tudo vai correr bem, tenho a certeza. Aaiiiiii !!!!

E despertou da sua letargia.

- É agora! Força! Já lhe senti bem os pés… . Aqui estão eles. Até que enfim! Bolas que o puto é patudo. Chiça! E já vem com as unhas bem afiadas ... . Vá lá, só mais um esforço!

A voz grossa e desagradável do médico, e as dores crescentes, espevitaram, mais uma vez, Maria Adelaide que se esforçou por afastar a semi-embriaguês que nas últimas horas, já tornadas inesquecíveis, lhe tinha permitido sobreviver ao caos que parecia rodeá-la. Durante esse espaço de tempo, deixara-se pairar num limbo misterioso, onde era praticamente impossível distinguir entre a espinhosa realidade e os pesadelos com que já se habituara a conviver quando, à noite, estava sozinha em casa, a lavar a loiça ou a passar a ferro as inúmeras camisas do marido. Eram pesadelos/sonhos, incrivelmente variados e todos eles muito malucos. Mas todos acabavam bem como nos filmes americanos.

A dor aguda, que lhe arrancou um grito mal contido, teve o condão de a despertar totalmente e de a fazer estampar-se na realidade do presente que a rodeava: o seu filhote estava, finalmente, a nascer. Olhou para a barriga que, gradualmente, perdia volume, à medida que a cria se libertava das entranhas apertadas da mãe. Enquanto ia retomando, devagarinho, o controlo sobre o seu corpo, ainda disforme, e sobre a sua mente, sempre empreendedora, foi-se apercebendo das alterações que se tinham operado à sua volta:

Mas onde raio é que eu estou metida? Que lugar foleiro é este? Ah! Já me lembro: estou na Maternidade, a cumprir a minha função de ser mãe pela primeira vez na vida… . Boa, afinal sirvo para alguma coisa! Aliás, pelo som estridente que oiço: aquele ali deve ser o meu rebento a protestar. Deixa estar, meu filho, tens toda a razão: se eu estivesse aí no teu lugar a olhar para essa tromba horrorosa também berraria.

O bébé tinha posto os seus dois mini-pés no mundo e a sua voz fazia-se ouvir: primeiro rouca e hesitante e, por fim, bem sonora e segura dos seus protestos. Curiosamente, e apesar do berreiro do debutante no mundo estúpido dos seres humanos, o barulho e a confusão de alguns momentos atrás tinha cessado, incompreensivelmente, dando lugar a uma falta dos sons variados, habituais numa sala de partos. As pessoas presentes continuavam a ser as mesmas do início, com o acréscimo de mais uma ou outra cara nova. E todas elas se apressavam a cumprir as tarefas que lhes competiam. Até ver, de forma exemplar.

A dado momento, o silêncio foi crescendo na sala, até se tornar incómodo, bem pior do que o anterior ruído desagradável. Era como se todos quisessem passar despercebidos. Até o choro vibrante da criança parou, talvez devido à inibição de se sentir tão observado logo no primeiro dia de vida ao “ar livre”.

Um assobio agudo e imperfeito feriu o ambiente. Não deixava de ser uma manifestação pouco comum e muito deselegante para aquele lugar. E para mais, vinda de um obstetra. E o mais grave: após realizar um parto. Até a outra futura mãe, que aguardava a vez de pôr o seu rebento no mundo, contorcendo-se em cima de uma maca curta demais para ela - uivando de dores -, se calou e fixou o seu olhar exausto no médico. Este observava o bébé da Maria Adelaide com um olhar arregalado, onde parecia ler-se um respeito sonhador. As enfermeiras emitiram gritinhos extasiados, enquanto que a pediatra tentava ocultar o seu sorriso apreciativo, por detrás de procedimentos aparentemente indispensáveis. Por outro lado, o anestesista, não resistindo à curiosidade natural que caracteriza o ser humano (quer seja homem, quer seja mulher) foi, também, espreitar. E esse é que não conseguiu mesmo conter-se, exclamando:

- Bolas, mas que grande tusa com que o puto se lança na vida, nunca tinha visto nada assim. Ah, valente !

Em situações normais, aquela observação de mau-gosto seria susceptível de causar graves problemas profissionais ao anestesista. Mas a verdade era que ele se limitara a dar voz - algo exageradamente é certo - aos pensamentos atrapalhados de cada um dos presentes.

Foi precisamente nesse momento que Maria Adelaide começou a tremer descontroladamente, sem que a sua mente confusa conseguisse pôr em ordem aquele corpo ridículo. A certa altura começou a ouvir os seus dentes a bater, desenfreados, uns nos outros. Como quando tremia de frio:

Estou pirada de vez: já nem sou capaz de restaurar a minha própria normalidade. Será que ninguém me dá um estalo para me fazer parar de tremer? Um estalo, por favor!

Sonho ou realidade? Era-lhe impossível determinar, com segurança, o que realmente se estava a passar com o seu corpo. Só sabia que estava muitíssimo nervosa, e com alguma vontade de rir: o médico tinha-lhe feito cócegas. Passado um bocado, Maria Adelaide continuava com a mesma tremideira ridícula. Mas, perante a indiferença generalizada do público que a rodeava, teve mesmo de se descontrair por auto recriação, até que o cansaço passou para segundo plano, acabando por se transformar numa vontade ansiosa de saber o que se estava a passar à sua volta.

Apesar da preocupação que a dominava, a curiosidade começou a ganhar terreno e a certa altura tornou-se insuportável. Queria compreender o que se passava:

Sobre que raio é que estes gajos todos estão a cochichar? O que é que se passa com o meu filho? Merda, ainda por cima esqueci-me dos óculos: não consigo ver nada com nitidez.

Quis espreitar, apoiando-se nos cotovelos, mas sem a ajuda dos óculos não conseguiu vislumbrar grande coisa. Olhou à volta semicerrando os olhos como fazem os miopes, com a intenção de pedir ajuda e algumas explicações, mas ninguém lhe prestou a mínima atenção. Todos se tinham reunido à volta do médico – portanto, bem à frente das suas pernas abertas – com um ar de espanto e riso mal controlado. Estava a começar a ficar irritada, e com razão. Teve vontade de gritar e de esbracejar para que se lembrassem da sua existência invisível.

Ainda abriu a boca, mas a garganta estava tão seca que não conseguiu emitir o mínimo som compreensível, só um grunhido rouco, sem sentido. E então, numa tentativa desesperada de vencer a frustração e ansiedade, deixou os seus pensamentos explodirem:

Mau, Maria! Começo a sentir-me uma boneca articulada nesta posição ridícula, de pernas abertas, enquanto estes gajos estão todos a olhar especados para o bébé. Mas que diabo de situação mais constrangedora.

ALLÔ!!! Estou aqui! Sou eu A MÃE, certo?

A mostarda já estava a chegar-lhe à ponta do seu proeminente nariz, precisamente na altura em que o médico entregou o bébé à enfermeira. Esta, pegou-lhe ao colo com um cuidado que lhe pareceu excessivo: como se de uma peça rara se tratasse. Mesmo para um recém-nascido, aqueles cuidados pareciam-lhe exagerados.

Só então é que Maria Adelaide conseguiu compreender a razão para tamanho alarido na sala de partos: vislumbrou a pilota do seu filho e também abriu a boca de espanto. Era obra! E o mais engraçado é que, não bastando ser bem comprida, ainda estava bem espetada, como o mastro de um navio. Sentiu-se orgulhosa do seu pequeno macho viril:

Ah, grande filhote. Tens uma pila bem melhor do que as pilotas de muitos machões que andam por aí a fazer peito largo nas revistas, para impressionar as miúdas. Ainda agora chegaste e já estás a causar confusão e emoção.

Naquele segundo, teve a confirmação, imediata, de quem era o pai da criança. Em simultâneo subiram-lhe uns calores e uma vontade incontrolável e, a bem dizer, incompreensível de rir às gargalhadas. Mas, logo na primeira tentativa de esboçar um sorriso ténue, as dores foram insuportáveis e viu-se forçada a refrear a exteriorização dos seus pensamentos mais íntimos:

Se estas palermas ficaram impressionadas com a pila do meu filho, haviam de ver a do pai: aquilo é que se pode considerar um homem bem fornecido. Ainda bem que o Marcelino nunca quis fazer parte da equipa de futebol de velhos em que o meu Camilo joga à defesa. Para meu descanso, tanto quanto sei, nunca tiveram a oportunidade de tomar duche no mesmo balneário. Já estou a imaginar o Marcelino ao ver o outro: primeiro roído de inveja e, mais tarde, quando estivesse a ver o filho no banho, num momento de clarividência, a juntar dois mais dois (ou melhor: duas mais duas) e a ter um ataque de fúria.

E estava eu preocupada com a cor dos olhos. Nunca pensei que a pila fosse uma parte do corpo susceptível de tamanha influência e semelhança hereditária. Essa, pelo menos, sempre se pode ir ocultando com as fraldas. Aliás, bem posso estar descansada, se conheço o meu Marcelino, nunca mudará uma fralda na vida. Como ele sempre disse: “os filhos são das mães”.

No seguimento de todos os acontecimentos mais recentes, Maria Adelaide achou mais saudável seguir, com atenção redobrada, todo o processo de recepção de boas-vindas feito ao seu rebento por este mundo. Mas esquecera-se do "binóculo" no quarto, em cima da mesa-de-cabeceira. Bem podia esbugalhar ou semicerrar os olhos e esforçar-se: sem óculos, o resultado era nulo. A última imagem, desfocada, a que tivera acesso não a ajudou, por aí além, a descontrair-se. E para cúmulo do surrealismo que começava a conquistar toda a situação, ouviu uma voz esganiçada que dizia:

- Oh, já viram o pestinha do miúdo? Mas que grande pirilau. Nunca tinha visto nada assim. Vai, com certeza, ser o recordista deste Hospital. Uuiii! Fez-me chichi para o peito … malandrinho!

Depois desta cena disparatada, e algo irreal, adormeceu profundamente. Só passados uns dias é que veio a saber que ia provocando um ataque cardíaco ao anestesista: quando este a viu a dormir, completamente imóvel, pensou que ela tinha tido uma solipampa qualquer, derivada da anestesia que lhe dera (já um bocado à pressa). Segundo o que uma das enfermeira lhe contou mais tarde, o homem ainda tinha a mão que segurava no cigarro a tremer, mesmo muito tempo depois de ter confirmado que, afinal, ela se limitara a desmaiar de cansaço.

Quando recuperou os sentidos, bastante mais tarde, Maria Adelaide não se recordava de nada, inclusive nem tinha bem a certeza de já ter parido. Estava, consideravelmente, estremunhada. Mas quando tentou sentar-se na cama para descobrir onde se encontrava, as dores que a atacaram foram um recordador de memória extremamente eficaz. Tentou, mais uma vez, aquela proeza, tão complicada, de se erguer ligeiramente na cama, desta vez de forma mais suave. Lá conseguiu colocar as almofadas nas costas e na cabeça, de forma a ficar numa posição que equivalia, mais ou menos, a 30 graus de inclinação. Fechou os olhos e tentou aproveitar toda a descontracção característica daqueles raros momentos de silêncio. Aninhou-se o melhor que pôde entre as almofadas, obrigou-se a semicerrar os olhos e, por fim, passou para além do limiar da realidade.

Dormiu durante um bom par de horas: foi um sono agitado, mas sem pesadelos. O incómodo que lhe perturbou o sono, e os poucos sonhos, teve uma origem física, não só derivado das dores variadas que lhe agrediam o corpo, mas também das carências latentes que continuavam a consumi-la interiormente, quer estivesse a dormir ou acordada.

Ainda meio adormecida, começou por ouvir algumas vozes vozes longínquas : apenas um burburinho que ecoava à sua volta. Ainda teve uma esperança, semi-inconsciente, de que aqueles sons fizessem parte do sonho fantástico que tinha estado a viver. Mas, a pouco e pouco, as vozes foram ganhando corpo e aumentando de volume, até se tornarem incómodas. A certa altura, compreendeu que já devia estar instalada na cama do quarto (e não na sala de partos), pois sentiu que estava uma gente diferente por ali. Na expectativa de que, tal como nos sonhos, aquela gente se fosse embora, ou se esfumasse, pura e simplesmente, no ar, Maria Adelaide teimou em continuar de pálpebras bem coladas umas às outras. Só quando ouviu a voz sonora da cunhada é que começou a compenetrar-se de que ia mesmo ter de acordar (a bem ou a mal). Era impossível alguém dormir, ou unicamente descansar, com aquela voz a gritar aos ouvidos.

Espreitou por entre as pálpebras. Vislumbrou a figura familiar do irmão mais novo, o que já não era muito animador, mas o pior foi quando confirmou a presença da adorada e ruiva esposa. Maria Adelaide detestava a Maria de Lurdes:

Lurdes não, LOUrdes! Não embirro com ela, só acho que não passa de uma estúpida presunçosa. Não é que o meu irmão seja um génio. Mas, mesmo apesar de não ter sido bafejado por uma grande quantidade de massa encefálica, pelo menos, o Marcelo podia ter tido a sorte, ou a esperteza, de arranjar uma mulher porreira ou, no mínimo, normal. Esta tipa não existe. Não há dúvida que a alcunha que lhe pus assenta-lhe às mil maravilhas – Madame Lela.

Maria de Lourdes era a filha única de um casal corriqueiro que vivia no Barreiro. Os seus pais tinham um cafézinho que sempre lhes teria dado para viver bem repimpados, não fosse aquela filha adorada que lhes engolia todas as economias, nas coisas mais fúteis. Até conhecer e caçar o irmão de Maria Adelaide, tinha conseguido convencer os pais - o que para ela era canja, bastava uns beijinhos e abraços filiais dados na hora "H" – de que precisava desesperadamente de um apartamento em Lisboa, isto se quisessem que ela viesse a ser alguém. Não precisou de se chorar, nem muito nem pouco, para eles se deixarem ir em mais um dos seus egoísmos: bastou uma lágrima espremida a custo e uma fungadela infeliz. Hipotecaram o cafezito, que lhes servia de sustento, para poderem alugar um apartamento de 2 assoalhadas, bem no centro da capital, para a filha adorada. Facto chocante e risível, não fosse a miséria moral da situação.

Para se distrair e atrasar, o mais possível, o encontro fatal, Maria Adelaide meteu-se a recordar o dia em que conhecera a Maria de Lourdes:

Pode ser que se esqueçam de mim e se ponham a andar.

Lembro-me demasiado bem do dia em que a vi pela primeira vez. Fui uma estúpida inconsciente em dá-la a conhecer ao Marcelo: nessa altura, nem eu imaginei como, mais tarde, me viria a arrepender. Estava descansadinha na praia da Rainha, na Costa da Caparica, com o meu irmão e o grupo do costume, quando reparei numa miúda ruiva, espojada mesmo à nossa frente. Se calhar foram os seus cabelos cor de cenoura que me chamaram a atenção, ou talvez o simples facto de estar sozinha na praia. Como de costume, comentei a minha descoberta ao Marcelo. O tipo ficou doido com os cabelos cor de fogo da fulaninha, que mais tarde vim a confirmar serem pintadíssimos, e especialmente entusiasmado com o seu moderníssimo fato-de-banho: cor-de-rosa, com folhinhos brancos nos contornos das pernas bem torneadas e no decote algo ousado do peito. É claro que o palerma do Marcelo não teve nenhuma dificuldade em chegar à fala com ela, até porque passou todo o santo dia a mostrar-lhe os dotes de futebolista (e como é sobejamente sabido: as miúdas adoram os desportistas). Além disso, não é por ser meu irmão, mas o puto sempre foi o mais borracho do grupo: loirinho, de olhos azuis, muito escuros, e bom corpito.

O que ao início parecia não ir passar de mais um namorico breve e inconsequente, tornou-se de tal forma sério que, para mal dos meus pecados, acabou em casamento. Não sem a interveniência de alguma chantagem psicológica pelo caminho: umas gravidezes, que afinal não passaram de falsos alarmes, tentativas de suicídio forjadas, e cenas de ciúmes compugentes. Por fim, a tipa lá o conseguiu convencer que era a mulher ideal para ele.


A voz imparável e aguda da Maria de Lourdes não lhe permitiu continuar a divagar sobre o que quer que fosse. E por fim, teve mesmo de fazer a ligação à Terra, já que o barulho se estava a tornar impeditivo de qualquer tipo de pensamento minimamente coordenado. Abriu, muito ligeiramente, os olhos: como as crianças quando brincam às escondidas e tentam fazer batota. Tinha receio dos olhares que, com certeza, deviam estar colados à sua figura, ainda disforme, entornada em cima da cama da Maternidade. Maria Adelaide detestava que reparassem nela e sobretudo que a observassem. Nunca se achara nenhuma beleza, bem pelo contrário. Com a ajuda das repetidas ironias dos pais, relacionadas com os seus olhos demasiado pequenos e com a altura excessiva – na Escola e na rua rapidamente passara a ser conhecida pela dois metros - fora adquirindo a insegurança e a timidez que desde os 15 anos lhe vinha dando cabo vida.

Mas, se naquele momento pensava estar a ser o centro das atenções, depressa perdeu as veleidades. Estavam todos de rabo espetado, à volta do berço onde, certamente, dormia o seu bébé. Apesar da algaraviada que o rodeava, este mantinha-se espantosamente silencioso. Se calhar, o assombro do recém-nascido em relação às sombras de caras e corpos gigantes que o cercavam, era tal que nem conseguia emitir um mmm que fosse. Maria Adelaide ergueu-se o mais ligeira e silenciosa que lhe foi permitido - devido aos pontos que o médico achara conveniente dar-lhe após o parto-, para que não se virassem para ela as atenções ruidosas e incómodas.

Começou por tentar identificar os visitantes através dos rabos que conseguia vislumbrar. Rabos grandes e gordosos: os seus amados sogros, obviamente. Rabos metido em calças demasiado justas: os do seu irmão Marcelo e esposa e, ainda, um rabo mirrado e sem história: o daquela prima velha que, desde que o marido a deixara por uma com menos 20 anos, nunca largava a mãe do Marcelino. No que se referia ao rabo musculado do pai oficial da criança... :

Nem cheiro do Marcelino, como não podia deixar de ser. Pulha!

Interrompeu os seus pensamentos amargos para procurar o relógio. Reparou que continuava no seu pulso:

11 horas! A esta “hora da madrugada” ainda deve estar a curtir as primeiras horas de sono. Provavelmente, bem acompanhado. O mais certo é o meu lugar na cama estar a ser conspurcado e aquecido por alguma das jeitosas que o caçam lá pelos bares ranhosos onde ele vai sobrevivendo todas as noites. Nesta altura do campeonato, já nem estou certa de quem tenho mais pena e raiva: se dele, se de mim.

Obrigou a sua atenção a regressar ao quarto quando ouviu a voz desdenhosa da sogra a falar, ou melhor, a chicotear o marido. As suas deambulações mentais focaram-se nos pais do Marcelino. Os sogros de Maria Adelaide, cada vez mais, pareciam tirar algum gozo da situação caótica do filho, por muito que isso pudesse parecer incompreensível e inaceitável:

Gostam tanto de mim que nem querem saber o que realmente se passa com o filho. Preferem que ande por aí na putanhice, sempre é um motivo para dizerem mal da nora. Seja como for, a verdade é que, para eles, a culpa de tudo o que corre mal é sempre minha. Nem lhes passa por aquelas cabeças leves e maldosas que os maiores responsáveis pelo desvario e frustração do filho foram, e continuam a ser, eles próprios, dado que nunca lhe deram o mínimo apoio.

Dos cinco filhos, sempre tinham tratado o mais novo - o Marcelino - como sendo o menos inteligente e o menos capaz. E o pior de tudo era ele ter acatado, plenamente, essa situação. Nunca conseguira superar a condescendência do pai, nem o desinteresse egoísta, e por vezes maldoso, da mãe.

Começara por se orientar, consideravelmente bem, como treinador de andebol, mas passado algum tempo, e após diversas tentativas frustradas, o seu pai submetera-o a tais pressões e chantagens psicológicas que o levara a despedir-se, para se dedicar ao obscuro e deprimente negócio da família – funerais. Realmente, era um daqueles negócios que, por muitas oscilações que sofresse, nunca chegavam a ser preocupantes, pois, feliz ou infelizmente (dependia da perspectiva), os clientes estavam sempre assegurados.

Embora, à partida, na óptica das pessoas sãs da cabeça, a actividade desportiva seja uma ocupação mais agradável e alegre, e ocupe um espaço saudavelmente oposto à actividade funerária; para o Marcelino, o acto da morte alheia sempre o deixara, se não indiferente, pelo menos distante. E ainda bem, tendo em conta a sua, já duvidosa, sanidade mental.

No que se referia à velha prima Mimi: a sua história estava longe de ser brilhante ou modelar. Bem pelo contrário, chegava a ser susceptível de fazer corar um bom cristão. Nem tinha ponta por onde se pegasse. Sempre fora uma mulher dura e fria. Nunca quisera ter filhos e das vezes que lhe acontecera engravidar, arranjara forma de tratar do assunto com toda a limpeza. Da primeira vez saltara da mesa da sala, tantas vezes quantas as que foram necessárias para garantir um aborto natural; da segunda vez atirara-se pela escada abaixo e lá tivera o azar, ou castigo divino, de partir um braço. Mas livrara-se, mais uma vez, de um “peso” e evitara a fatídica e assustadora deformação do corpo. Desde que o marido, bem orientado na vida, com quem casara pura e simplesmente por interesse, a abandonara na esperança de encontrar uma mulher que quisesse ser a mãe dos seus filhos, andava incompreensivelmente colada à mãe do Marcelino. Talvez o elo que as unisse fosse a má-língua, ou a tendência natural de ambas para a maldade. Nisso eram peritas: umas autênticas trabalhólicas.

Precisamente na altura em que os pensamentos de Maria Adelaide iam, de vento em poupa, retomar o fio da meada onde tinham ficado, viram-se obrigados a travar e a meter pata a fundo. As suas adoradas dissertações mentais teriam de esperar por melhores momentos. O seu irmão, certamente cansado de olhar para um recém-nascido sem nada de particularmente interessante, já que estava de fralda e bem tapadinho, ou, então, já farto dos grunhidinhos histéricos da esposa, voltou-se para a cama onde jazia a irmã e dirigiu-se para ela com os compridos braços abertos, ansiosos por a estreitarem com força.

- Querida maninha. Parabéns. Tens ali um mini-Marcelo e pêras. Felizmente para ele sai aqui ao tio nos pontos físicos mais importante, se é que me faço entender...? Vai ser um autêntico valdevino, está garantido. Ainda me vai fazer concorrência com aquele corpito, o pestinha.

E ainda não viste tudo, querido maninho.

Grande parva! Estava para aqui com tantas paranóias que até me esqueci de como alguns homens gostam de disputar a fama de serem bem constituídos. Isto para não falar na importância que para os verdadeiros machos latinos têm as partes baixas. Coitados, chegam a ficar totalmente ofuscados por si próprios. Esses ingénuos ignoram, quase sempre, a qualidade em detrimento da quantidade. Pensam que as mulheres só se preocupam com o tamanho...

Escusado será dizer que, a partir daquele momento, se instalou, naquele quarto de Hospital, a confusão mais total que se possa imaginar. Não eram muitas pessoas, só que as que ali se encontravam tinham todas uma característica comum: uma sonoridade estridente.

Entre beijinhos, abraços e frases de circunstância soltas ao “Deus dará”, Maria Adelaide conseguiu sobreviver, a custo, fingindo ouvir e corresponder, sofrivelmente, ao que lhe era dito. Barbaridades incluídas.

Nem quis acreditar quando aquele maralhal se pôs a andar, uma hora e meia mais tarde. O mais assustador foi prometerem voltar no dia seguinte à mesma hora. Ficou desesperada:

Credo, estou tramada!


Quando ficou sozinha, olhou, pela primeira vez de óculos postos, para o bebé que continuava a dormir no berço: sereno e indiferente ao que se passava à sua volta. Continuou a observá-lo durante um longo momento. Por fim, teve de admitir para si própria:

Até que nem é nada feioso, apesar de ser meu filho. Qualquer pessoa vai partir do princípio lógico que o pirralho é filho do Marcelino. Até porque o Marcelino é que sempre foi considerado a “entidade bonita do casal”, (expressão preferida dos meus queridos sogros e da minha saudosa mãe). Tenho a certeza de que ele próprio se vai comportar como um pai babado pelo seu mini-macho. Nem vai querer saber da história do pirilau bem espetado e comprido do gaiato. E se reparar nesse pormenor, é bem capaz se sentir ainda mais orgulhoso.

Pegou no telefone e ligou, primeiro para casa, onde ninguém lhe respondeu, tal como, aliás, Maria Adelaide já esperava. Começou a falar, ignorando o sinal de chamada não correspondido. Inventou a conversa, que não passou de um monólogo, que gostaria de ter tido com a pessoa que supostamente deveria estar do outro lado do fio. Enquanto falava através do bucal do telefone, como se estivesse a contar confidências ao melhor amigo, ia observando o bébé deitado no minúsculo berço, à distância de um olhar. Sentiu as lágrimas a escorrerem-lhe pela cara. Queimavam-na. Depois, continuou a olhar para o seu filho e a emoção foi mais forte, desligou o telefone pousando o auscultador com violência:

Quero lá saber do Marcelino! O miúdo é bem bonito, tendo em conta que é um recém-nascido. Pensando melhor, até vai ser engraçado ter uma criança para cuidar. E pensar que ainda há umas horas atrás estava em pânico e com vontade de ceder a minha pele à primeira pessoa que a quisesse.

Quando marcara o número de telefone de casa, Maria Adelaide sabia, a priori, que nem o preguiçoso do marido, nem as suas adoradas enteadas, se iriam dar ao trabalho de atender o telefone; ele porque nem sequer iria acordar com os inúmeros toques estridentes do aparelho, elas porque, apesar dos seus meros 6 anos, tinham um feitio de cão e só atendiam as chamadas quando tinham a certeza de ser a maluca da mãe, isto é, nunca. Sendo assim, desistiu de tentar entrar em contacto com a sua família mais chegada e recostou-se na cama, disposta a disfrutar do amor maternal que começava a encher-lhe o peito e a ganhar-lhe a imaginação.

Ainda ligou para o Camilo que, como já vinha sendo hábito nos últimos meses, não atendeu. Até parecia que adivinhava quando era ela, se calhar reconhecia o toque do telefone. Desistiu e jurou nunca mais tentar, pelo menos enquanto estivesse no Hospital. Tinha de se impôr limites para as sensações de humilhação que se permitia sofrer. Sentiu, pela enésima vez na sua vida, que estava sozinha. Hesitou um segundo e depois rectificou o pensamento e o próprio sentimento:

A partir de hoje nunca mais vou estar sozinha, bem pelo contrário. Lá virá o dia em que darei o cuzinho e cinco tostões por conseguir estar repimpada, sem ninguém à volta, nem que seja por uma horita.

Estava farta de sobreviver mal e porcamente, como um pêndulo, entre dois homens que nada lhe davam, só a sugavam, cada um à sua maneira. Um que se tornara um bêbedo chato e desinteressante, que só sabia ir a casa para sacar o dinheiro do negócio soturno que legara à mulher. O outro, o Camilo, o pai presuntivo do seu filho (que naquele instante mamava desalmadamente agarrado à sua mama direita), era um homem já com mais 10 anos do que ela. Para dificultar as coisas, já por si só bastante complexas, era uma figura pública, bastante conhecida, principalmente no meio feminino, já que para além de solteiro era um borracho infernal. Limitava-se a telefonar-lhe esporadicamente, como se nada se tivesse passado entre eles. Durante um desses telefonemas relâmpago, chegara mesmo a dizer-lhe que nem sequer tinha tempo para almoçar com ela. E assim, com a maior das limpezas, e com toda a educação semântica que a língua portuguesa permitia, tinha posto para trás das costas o monte de promessas que lhe fizera... Maria Adelaide sentia-se obrigada a recordar um livro que lera, havia uns tempos, sobre as mentiras que se dizem na cama, no auge do desejo e da paixão:

Começo a achar que, afinal, o que ambos fizemos naqueles semi-encontros, não passou de movimentos acrobáticos de ginástica sexual. E que ginástica, já que os encontros decorreram, invariavelmente, dentro de um carro de Estado, enquanto o motorista, o fiel Alfredo, ia beber um café e comer um pastel de Belém. O filho da mãe até chegou ao cúmulo refinado de me pedir em casamento, logo que eu me livrasse do Marcelino e ele da mãezinha, doente terminal. A velhota é que tinha o dinheiro, e, aparentemente, não só não se separava dele, como ameaçava deserdá-lo se ele se casasse. Num desses encontros, até teve o desplante de me falar dos filhos que podiamos vir a ter quando, finalmente, estivessemos juntos. Filho da Mãe!

Quando deu por si grávida, a Maria Adelaide começou por ficar radiante: como qualquer futura mãe. Até porque havia já algum tempo que, sempre que se encontrava com o Camilo, sentia uns anseios suspeitos de ter um filho dele. Só passados os primeiros segundos de euforia é que o pânico começou a ganhar forma dentro dela. E o Marcelino? O que é que lhe ia dizer? Até porque o filho podia ser dele, se bem que tal fosse deveras improvável. Mas, a verdade era que nem ela podia ter a certeza absoluta:

Que raio de confusão desagradável em que me meti... Tenho de fazer um esforço e controlar as minhas dúvidas e angústias.

Por isso tudo, e mais alguma coisa esquecida, ali estava a Maria Adelaide sozinha, com o seu rebento bem enfronhado nas suas mamas carregadinhas de leite. A criança estava cá fora, era um rapaz aparentemente saudável e com tudo no sítio. E, pelo que já era sabido, bastante viril - um ponto forte para os rapazes. A partir dali, ela só tinha que ir dançando ao ritmo da música que lhe fosse surgindo pela frente e pela vida fora:

Não deve ser assim tão difícil sobreviver com uma criança. Já muitas mulheres o conseguiram antes de mim, porque não eu?!

Tuesday, April 3, 2007


Derivações IX

a partir do texto As Casas de Dóris Graça Dias.

direi – nesta sala é onde costumo chorar e rir
........................... dos outros lugares do mundo,
vou para o corredor quando me apetece dançar
e às vezes trago da varanda recados de inesquecíveis dilúvios.
direi – aprendi a contar pelos degraus das casas.
mais tarde, nas horas de invenção de outros jogos
repetidas vezes afirmarei
- um dia hei-de ser mais velho que tu!,
inversão imaginária do tempo, impossível ultrapassagem;
é que por vezes, mãe e casa confundem-se,
prontas sempre a guardar-nos os segredos que nem a elas contámos,
ajudam-nos a crescer
e só nos pedem que as não esqueçamos,
é essa adquirida acessibilidade das horas inteiras,
corredores que se interrompem em salas;
são os primeiros pratos e os primeiros copos desirmanados
que não pertencem a conjunto nenhum.
pode ser uma maneira outra de gostarmos da vida,
de lhe observarmos as fraquezas sem temer a queda delas
.......................................................................... sobre nós.
das casas que habitámos soubemos guardar os segredos,
é que as casas, por vezes, não são lugares para os nossos barulhos,
por exemplo,
há casas que resultam da reunião de dois ensaios de vida,
casas nuas,
sem correspondência de carinhos,
sem mais que a nostalgia das esperas.
das casas aprendi verdades tão iniciais acerca da vida.
aprende-se a cumprir as casas, insuspeitáveis testemunhas,
quando temos a certeza de que cabem na nossa memória.

Monday, April 2, 2007

A SAGA DO PILAS IV

Todas essas sensações e pensamentos, que para a uma mulher segura de si poderiam passar por meros devaneios, se foram transformando em desconfianças redobradas a que não estava habituada e acabaram por lhe semear algumas dúvidas e, sobretudo, diversificadas insatisfações, quer a nível moral quer a nível físico.

Desde que me meti com o Marcelino que a minha existência como mulher oscila entre as suas investidas obsessivas e violentas e a sua ausência física quase total. Se a insistência sexual exagerada – mesmo vinda do respectivo marido – é desconfortável e, às vezes, bem dolorosa, a abstinência forçada torna-se, por vezes, ainda mais terrível, pois a certa altura começa a ser suspeita: como é que se justifica o súbito desinteresse?

Acho que grande parte das mulheres, mesmo nos dias que correm, quando sentem desinteresse ou indiferença sexual por parte dos seus homens, começam logo a desconfiar, ou pelo menos a estar mais atentas em relação a quaisquer outras amizades que possam existir extra-casal. É o que eu vou passar a fazer: estar de olhos bem abertos e ouvidinhos atentos… Já numa destas noites me pareceu ouvir o Marcelino pronunciar um nome de mulher que não o meu. Nem quis acreditar nos meus ouvidos, mas pareceu-me que chamava pela Maria Rosa. Não pode ser, devo ter ouvido mal. Devia estar a ter um sonho erótico, o filho da mãe. Só me faltava ser traída por aquela tipa que anda sempre para aqui a chatear-me.

Maria Adelaide, sentia-se numa situação deveras complicada e vulnerável. Mesmo que a mente não o quisesse admitir, o corpo andava irrequieto e insatisfeito, como se lhe faltasse alguma coisa. Não conseguia disfarçar a falta que sentia de um outro corpo, mais forte e envolvente. Camuflava o desejo e a imaginação sexual, mais fértil cada dia que passava, chamando-lhe necessidade de protecção.

Definitivamente, tenho de esquecer o que me ensinaram. É cada vez mais óbvio, para o meu corpo, que o sexo não serve só para procriar. O prazer físico, através do envolvimento carnal, pode ser um grande pecado, mas é bom que se farta. Que se lixe se não passo de uma miserável pecadora. Antes o castigo que a abstinência e a frustração. Começo a ter dificuldades em me controlar. Chego à terrível conclusão de que o sexo é como tudo o que sabe bem na vida, passa-se sem ele, até ao dia em que a curiosidade é mais forte do que a castração moral e se cai na tentação de o experimentar. Agora que fui apanhada, já não há nada a fazer. No final, acaba sempre por se tornar, salvo raras e estranhas excepções, um prazer de primeira ou, no máximo, de segunda necessidade: tudo depende dos vícios de cada um.

Apesar de todos os esforços de Maria Adelaide para que, nessa altura negra da sua existência, ninguém à sua volta compreendesse o que se passava no seu íntimo, não conseguiu ser suficientemente convincente. Tinha o azar de ter uns olhos demasiado expressivos, apesar de protegidos pelos óculos, onde se espelhava tudo o que lhe ia na alma e no coração. O pior foi quando as suas ansiedades e carências físicas se avolumaram de tal forma que lhe foi impossível conter-se durante mais tempo. E aí transpiraram elas, como uma torrente, para o mundo exterior, tornando-se, incompreensivelmente, públicas. Nesse processo desagradável de violação de uma alma carente e perdida deve ter havido a mão maldosa de alguma amiga “do peito”… Foi chocante a rapidez com que começaram a surgir pretendentes muito interessados, a maioria muito interesseiros.

Na altura, tudo lhe pareceu difícil de acreditar e, sobretudo, deveras confuso. Mas, aos poucos, serviu-lhe para conhecer melhor o género humano e as pessoas que a rodeavam. Tudo isso lhe permitiu adquirir uma maior sabedoria para lidar com os acontecimentos desagradáveis que a rodeavam. Até aprendeu a deixar de se sentir culpada e pecadora: passou a saber justificar-se perante si própria.

Que estupidez! Agora que penso nisso a sangue frio até consigo compreender que a minha solidão tenha sido detectada com relativa facilidade: as carências e a necessidade de apoio e carinho são características de quem está a passar por um mau bocado. Não devo ter reparado, mas provavelmente andava a comer demasiados doces.

O mais degradante nesta história toda, é ter de chegar à triste conclusão de que o ser humano, tal como um predador disfarçado, alimenta o corpo e o ego com as infelicidades e desesperos alheios. Nessas alturas, só não se lembra que, da forma como a vida está estruturada, sobre um futuro incerto e um destino falível, rapidamente o caçador passa a caça. E o predador torna-se a presa indefesa.

Tudo aconteceu de repente: os homens que habitualmente passavam indiferentes por ela na rua, ou que com ela se cruzavam no café da esquina sem sequer lhe prestarem atenção, passaram a sentir-se atraídos, como mosquitos pela luz ou formigas pelo mel, pela sua cara desalentada e a sua vontade mal disfarçada. Bastava-lhes um mero segundo de aproximação sinuosa, para, logo, aspirarem aquele odor doloroso e carente típico numa mulher desvastada pela solidão. Esta capacidade “intuitivo-predatória” aplicava-se, em exclusivo, aos mais experientes. Alguns, mais apressados, aproximavam-se à bruta, convencidos de que bastava aparecer e agarrar a presa, sem mais nada. Nenhum desses teve sorte. Outros iam rondando a vítima, impacientes, sem grande vontade de esperar, na esperança de bicar a novidade, sem dispenderem muitas energias mentais. Curiosamente, a maioria dos interessados eram amigos ou conhecidos do Marcelino como se tivessem sido enviados no intuito de compensarem o que ele não podia, ou não queria dar. Todos foram desistindo, com excessiva rapidez, logo nas primeiras tentativas goradas. Foi aí que surgiu o belo Camilo, vindo sabe-se lá de onde. E não é que conseguiu ultrapassar a impaciência e atingir os seus intentos? Há que dizer que o que lhe valeu foi a preseverança e o carinho. Tinha um “pequenino” senão, quando se perdia em discursos apaixonados, repletos de floreados, deixava escapar a sua verdadeira natureza de político de segunda. Fosse como fosse, as suas palavras eram doces e o sentido das frases envolvente. E a carinhos e bons-tratos não estava a Maria Adelaide habituada. Isto para não falar na figuraça de Adónis do homem.