Saturday, March 17, 2007

Derivações I

a partir do texto A China fica ao lado e outros contos de Maria Ondina Braga.

as paredes sujas de um beco viravam para o cais,
grandes incensadores ardiam no fundo das barracas
onde as mulheres enrolavam panchões.
reflectidos na lama do cais, ao fim da tarde,
deuses vestidos de cabaias compridas
e calçados com chinelas de palha de arroz,
deuses de gestos lassos,
festejavam com os homens a deusa A-Ma,
na rua dançava um dragão.
talvez um ensaio do fim do mundo
com os adens a baloiçarem-se como eu e como os navios
na claridade que crescera da paisagem aquática
como um colar de missangas.
uma mulher que cheirava vagamente a sândalo,
a perfumes vegetais,
tinha os lábios frios
como os pés de marfim dos condutores de triciclo.
o ar denso de fumo de incenso
continha toda a velhice do mundo,
algo de sobrenatural marcava o momento,
isto porque, no regresso, fazia escuro
e surgiam no caminho os primeiros sapos do dia da ressurreição.
a mulher fumava ópio em longa horas paradas,
ou outros querendo alguém,
alguma coisa,
todos inquietos,
desvairados todos.
lembro o volume da mulher contra os vidrilhos
de bacia nas mãos,
a mulher sem palavras
na tarde sufocada de tufões
quando os outros jogavam ma-jong,
e eu entristecia cómodo
como numa gaveta.
os pés da mulher eram peixes de vidro
a boiarem à flor da água como detritos,
como os tancares no Cais Interior,
nas ondas consecutivas da sua litania de ópio.
a mulher tinha os olhos azuis
e sabia uma história de deuses que se tinham embriagado de ópio
e enlouquecido.

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