Saturday, March 17, 2007

A SAGA DO PILAS I

Romance em fascículos, da escritora LMT, traduzido do romeno por MTL.

Sai aos sábados.

O Pilas cai neste mundo

O Pilas nasceu sob o auspicioso signo do Touro, símbolo de vitalidade e de sensualidade, tão em cima da passagem de 10 para 11 de Maio que teria sido muito difícil estabelecer a data exacta do seu nascimento se a mãe não fosse supersticiosa relativamente aos número pares, foi essa a razão que a levou a lutar afincadamente pelo dia 11 aquando do registo da data de nascimento. Nessa noite morna, mas pingona, Maria Albertina teve de estar durante três longas e dolorosas horas semi-deitada, de pernas abertas, até o moroso processo de expulsão do seu rebento de quatro quilos e trezentas gramas estar terminado. Ao fim desse tempo lá o conseguiram tirar, pelos pés, pronto para o que desse e viesse.
Para Maria Albertina, o acontecimento de ser mãe em vez de a envolver no tradicional estado de graça prolongado, resumia-se a horas de arrependimento e martírio que teria de ir tratando de esquecer ao longo da sua vida. Devia ter adivinhado que ia ser um dia insuportável; acordei mal humorada e ainda não me passou. Não compreendo como é que há quem diga que este é o segundo dia mais feliz na vida de uma mulher logo a seguir ao dia do casamento, para além disso o meu dia de casamento não serve de exemplo, comecei a lua de mel a ver a Guerra das Estrelas.
Agora que tudo acabara sentia-se impaciente e revoltada com ela própria, não só por causa do incómodo físico que subsistia, sabia que era tarde demais para se martirizar com o assunto, mas desprezava-se por se ter deixado engravidar como uma adolescente ingénua e pudica; tudo culpa de um mísero momento pouco original em que a carne fraquejara e abafara a razão com os seus gemidos e estremeções. A irritação ia engordando à medida que tinha a cabeça mais liberta para pensamentos excessivos e acabou por se enterrar num delírio aparvalhado que lhe despoletou sonhos pouco cristãos em que se via a dar bofetadas na vizinha Maria Rosa e a apertar o pescoço grosso do seu marido Marcelino. De nada lhe valeram os ensinamentos, incutidos pela sua mãe à custa de estaladas na boca, de abnegação nas contrariedades e contenção na sua tendência natural para a blasfémia e para o palavrão; a fúria passou anos luz à frente da recordação do sabor da pimenta na língua e desatou a extravasar-se através de um murmúrio ácido:

Maldita a hora em que me deixei levar pelas falinhas mansas do Marcelino, estou-lhe com um ódio de morte. Dizem que é habitual as mulheres terem acessos de fúria e frustração em relação aos maridos durante os partos, no meu caso, o que sinto ultrapassa a normalidade; não se pode chamar-lhe uma mera raiva pontual, pois a vontade de o fazer sofrer é demasiado forte para passar tão depressa.
Também estou capaz de esganar a Maria Rosa. Enquanto viver, nunca mais me vou esquecer daquela sexta-feira. Raios me partam! Tinha acabado de chegar a casa e de me livrar da carteira e dos sacos que, como habitualmente, trazia na mão (sempre que chego a casa sinto-me uma feirante com trezentas mil coisas às costas) quando ouvi o som estridente da campainha da porta. Estava a compenetrar-me psicologicamente de que tinha de começar a confecção do jantar para o Marcelino (não se fosse dar o caso inédito de ele aparecer para comer) e para as suas filhinhas adoradas (não se fosse dar o caso raro de quererem jantar sem me chatear a cabeça), e lá me apareceu a Maria Rosa, oscilando, como sempre, entre o estado teatral de irritação e o da lamúria, com mais uma das suas novelas amorosas trágico-cómicas.
Chata! Desde que se mudou para o prédio em frente não me larga a porta. Como se já não fosse suficiente ter de a aturar todo o santo dia a entrar-me pela Agência dentro, nuns trajes e maquilhagens demasiado ostensivos que não me ajudam nada ao negócio, ainda tenho de a aturar dentro de casa. E logo à hora de fazer o jantar. Isto para não falar no facto do Marcelino se babar sempre que a vê.
Recordo-me vagamente da suposta desgraça da Maria Rosa nesse dia. Tinha a ver com o namorado do momento, um futebolista da 2ª divisão, casado é claro. Sei que a história metia outras mulheres (para além da oficial), o receio de uma gravidez incómoda e cenas degradantes de estalada, à mistura. Só já não tenho bem a certeza de quem bateu em quem nem porque razão, nem quem estava grávida de quem. A infeliz falava tão depressa que comia a maior parte das palavras, e dos amendoins que tinha acabado de comprar e com os quais contava compensar-me das chatices do dia, de forma que nem as consegui ouvir na totalidade e muito menos decifrar o seu sentido. Já para não referir o português que ela articulava.
Apesar da minha atenção estar dividida entre a carne que tinha posto a assar no forno e a tagarelice contínua da Maria Rosa, estou certa de que fiz todos os esforços, humanamente possíveis, para tentar compreender o que dizia e ajudá-la. Cheguei a dar-lhe alguns conselhos, supostamente avisados, o que não deixa de ser caricato vindo de mim. O que mais me revoltou naquela história foi o ter a certeza de que, naquele momento, já a minha amiga era uma das atracções principais do lendário falatório dos balneários da equipa de futebol. Mas confesso que não estava com capacidade física, e muito menos coragem moral, para a tentar levar a encarar a dura realidade desta vida. Até porque era véspera de fim-de-semana e eu, como todas as pessoas que trabalham e são minimamente normais, já só ansiava pelo dia seguinte – sábado - para poder dormir o máximo que o barulho agressivo da rua mo permitisse. Não falando no facto de já estar pelos cabelos com as maluquices da Maria Rosa. Desde que a conheço que os seus dramas começam sempre da mesma forma: numa primeira fase, um homem que surge do nada e que a faz sentir-se, durante umas horas e às vezes dias, a mulher mais fantástica e única do planeta. Na segunda fase é ela que baixa todas as defesas, deixando-se transportar e cair numa paixão avassaladora e incontrolável. A última fase e a mais triste resume-se, invariavelmente, a mais uma desilusão e a mais um desgosto, sempre considerado o mais miserável de todos, pelo menos desde o anterior.
Coitada da Maria Rosa! Lá estou eu com pena dela. No fundo, ela limita-se a ser de carne e osso e a ter sentimentos, como alguns de nós. Vive tão ansiosa por encontrar alguém com quem partilhar as noites, em primeiro lugar, e os dias que quando lhe surge um homem minimamente interessante pela frente, aí vai ela a correr de braços abertos, como se tivesse encontrado o “Príncipe Encantado”. Nem se lembra de lhe perguntar, logo à partida, se, por acaso, ele é casado.

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