Saturday, March 24, 2007

A SAGA DO PILAS III

Recordações de uma mulher à beira de parir.
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Nos últimos dois anos, o Marcelino dera para se meter nos copos e na “má-vida” todas as santas noites. Invariavelmente, entrava em casa, nos dias em que o fazia, a desoras e, por vezes, chegava ao ponto infeliz de nem ter bem a certeza do local onde se encontrava, ou, até, de como se chamava.

A maioria da vezes aparece-me em casa num tal estado que nem sei o que fazer com ele. Nessas ocasiões só me apetece é deixá-lo a roncar na escada. Nem sei como é que ele encontra o caminho para casa, deve dar-lhe o cheiro da roupa lavada com certeza, já que, por vezes, nem o nome é capaz de articular. Realmente, como é que pode sequer desejar, ou sequer pensar, cumprir a sua obrigação de marido e espevitar o corpo o suficiente para me despertar algum interesse sexual. É verdade que, habitualmente, a vontade já não é lá muita. Mas também com aquele cheiro a álcool, qual seria a mulher disposta a aturá-lo?

Nas noites mais sombrias e complicadas, em que Maria Adelaide se sentia mais vulnerável e carente, acabava por aceder aos seus sentimentos, que protegiam, ainda, alguma da paixão do início da relação. Ajudava-o a despir-se, lavava-lhe os dentes, deitava-o, cuidadosamente na cama como uma esposa dedicada. Estendia-se a seu lado e descansava a cabeça sobre o seu peito macio, murmurando palavras carinhosas e apaixonadas, plagiadas de um passado longínquo em que tinham tido um sentido muito profundo. Quase no mesmo segundo em que ela acabava de as proferir, o Marcelino, estoirado de tanto álcool e divertimento, adormecia a meio de frases atabalhoadas e incoerentes, pronunciadas com alguma dificuldade, em jeito de desculpa, só para ela as ouvir, deixando transparecer um sorriso sonhador e infantil nos lábios. Nessas noites tudo parecia ser ainda possível, até a própria vida. Era como se tudo à volta deles, de repente, se transformasse num sonho fantástico e o mundo onde viviam passasse a ser uma ilha perdida no meio de lado nenhum. Onde só os dois existiam. Durante uns minutos, ela permitia-se, e esforçava-se, navegar nessa ilusão, na esperança de que, se fechasse bem os olhos e desejasse com muita força, a ilusão se tornaria realidade.


Sendo aquelas os únicos momentos de intimidade que conseguia partilhar com o marido, Maria Adelaide ganhara o vício de o observavar longamente. E do fundo do seu coração, ainda lhe chegavam espasmos escaldantes do passado, tornados dolorosos no presente, ao ponto de o desejar, com a mesma intensidade de quando o conhecera. Todo o seu corpo era invadido por uma onda de calor que a punha louca de desejo. Fechava os olhos, na tentativa de conter o fluxo de paixão que a envolvia e a forçava a aninhar-se junto àquele corpo. Nessas noites, bastava-lhe poder olhar para o mar profundo dos olhos dele para todo o seu ser vibrar e quase rebentar de desejo.

Apesar de todo o fluxo de desejos e sentimentos doces e esperançosos que trespassavam a memória e o peito de Maria Adelaide, a sua necessidade de se envolver com outro corpo e a sua vontade de amar não resistiam à respiração pesada do Marcelino, a cheirar a whisky, e o corpo a traí-lo com o odor intenso de perfumes caros que lhe eram desconhecidos. E toda a magia da noite se desvanecia numa nuvem de poluição.

Passada essa primeira fase de confusão dos sentidos, caía na dura realidade. Antes de mais tinha de o obrigar a deitar-se de lado, de forma a evitar que ele sufocasse (caso vomitasse) e para tentar que não roncasse com tanta violência. Num ápice o sonho erótico transformava-se no seu pior pesadelo: quando o Marcelino vomitava na cama ou no chão do quarto, antes de se conseguir arrastar até à casa-de-banho e enfiar a cabeça na sanita.

Mas, sem que ela própria percebesse bem porquê, foi ficando presa àquela existência castrada, como uma fiel cumpridora das promessas, ditas sagradas, mas já sem grande sentido no ambiente hostil em que habitava. Tal como prometera a si própria no dia do casamento: o Marcelino iria ser, quase seguramente, o homem, mesmo que ausente, que a acompanharia durante toda a sua passagem por este mundo. Maria Adelaide orgulhava-se, e ao mesmo tempo revoltava-se consigo própria, por ser tão fiel aos juramentos íntimos que fizera nesse dia. Por muita mágoa a que fosse sujeita, teria de permanecer de pedra e cal na vida daquele homem que era o seu, firme como uma mulher de armas cujo objectivo máximo na vida é honrar os seus compromissos. Nos dias mais negros em que se punha a deitar contas à vida, acabava sempre por se consolar ao acalentar a esperança da existência de uma outra vida, numa outra dimensão, talvez para além da morte. Aí sim, ela garantira a si própria que iria ser uma mulher feliz e, sobretudo, profundamente amada.

Com o correr dos dias, dos meses e dos anos foi-se sentindo cada vez mais marginal ao contexto
do dia a dia. Os princípios morais que lhe sido incutidos pareciam ter ficado perdidos, a quilómetros de distância. Nada na sua vida se estava a processar como seria suposto, tendo em conta as regras de conduta que lhe tinham sido incutidas com tanta rigidez. Maria Adelaide sentia-se cada vez mais baralhada e perdida dentro de si própria, sem compreender bem os chamamentos dos seus próprios sentidos. E foi assim que, sem disso ter plena consciência, acumulou, a pouco e pouco, frustrações interiores e necessidades fisiológicas que ela nem compreendia bem. Para não piorar a sensação de caos que a dominava, evitava pensar, e sentir, nas falhas emocionais que a trituravam impiedosas. A vontade de ser possuída por um homem, fosse ele qual fosse, já que o seu era um alegre valdevino, sempre em parte incerta, era tal que rapidamente atingiu o desespero. Esse desespero ansioso dava-lhe cabo da cabeça, pois, chocava-a e, ao mesmo tempo, assustava-a. Nunca pensara ser susceptível a esse tipo de fraquezas físicas. Até porque tinha de admitir não ser especial apreciadora de sexo. Gostava do Marcelino desde que o vira pela primeira vez e, de certa forma, desejava-o ainda com um furor semelhante, mas tudo era relativo: nunca fora dada a exteriorizar as suas vontades e desejos íntimos, bem pelo contrário, sempre se habituara a disfarçar as sensações mais fortes. Como dizia a sua mãe: “Mulher que não mostra o que sente só pode ser filha de boa gente”.

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