Tuesday, March 20, 2007

A SAGA DO PILAS II

A pedido de várias famílias romenas a residir em Portugal publica-se, à pressa, o segundo fascículo desta saga. Agradecemos à tradutora MTL a disponibilidade para traduzir a íntrincada prosa da LMT.
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Embora o som do televisor pairasse ao fundo, iam-me chegando algumas frases que me iam dando uma ideia do que estava a ser transmitido. Quando me apercebi do assunto que estava a ser tratado no tal programa da televisão as minhas orelhas arrebitaram. Tentei aproveitar os poucos intervalos de silêncio que surgiam no meio do discurso sonoro e excitado da Maria Rosa, (ocasiões que ela aproveitava para suspirar e dar fungadelas ridículas), para lançar o rabinho do olho para o meu televisor, já bem velho e gasto, e ouvir o que o locutor se esforçava por me comunicar e, de algum modo, aconselhar. A voz quente e insinuante do homem defendia que, a partir de dada altura do envolvimento erótico, é praticamente impossível, fisicamente falando, voltar atrás, tal o êxtase escaldante e a semi-inconsciência em que as pessoas mergulham. No monitor, começaram por se ver as silhuetas de um homem e de uma mulher, particularmente atraentes que se beijavam. A cena continuou, cada vez mais quente. A certa altura, quando o desejo começou a transformar-se numa febre contagiosa que parecia queimar, a imagem daqueles dois seres, cada vez mais envolvidos e entrelaçados um no outro, passou, gradualmente, de real e carnal a uma imagem tipo fotográfica, a negativo. Era incrível: conseguia-se identificar as diferentes alterações de temperatura que as diversas zonas do corpo sofriam, através da alteração das tonalidades do cinzento. Por fim, e já no auge do delírio, os tons mais escuros, indicadores do nível de resposta fisiológica ao desejo, tornaram-se de tal forma intensos que, apesar da cena se passar a preto e branco, a minha imaginação colorida fez-me corar violentamente, como se fosse a protagonista principal do programa.

Agora que penso naquele programa, com calma e descontracção, sempre gostaria de saber como é que um programa tão ousado e escandaloso terá conseguido passar pela censura. Cá para mim o censor, a meio da cena, começou a sonhar acordado e, no meio de todo esse delírio, não teve a coragem de vetar o programa, ou então, não quis perder a oportunidade de o ver novamente, talvez bem acompanhado. Não é que se visse alguma parte do corpo mais íntima ou alguma cena menos decente, até porque os corpos sendo reproduzidos a preto e branco, não têm a mesma carga erótica, nem conseguem atingir o mesmo tipo de envolvimento por parte do imaginário dos diferentes telespectadores.

Mas, feliz ou infelizmente, Maria Adelaide não teve a oportunidade de compreender a dimensão científica e muito real do que estava a tentar ver e ouvir. Só conseguiu vislumbrar algumas das cenas sensuais que, na altura, lhe pareceram deveras interessantes. No entanto, a curiosidade que as imagens lhe despertaram foi de tal forma aguçada que a fizeram sentir-se muito frustrada por não conseguir apreender a totalidade da mensagem implícita no programa. Aliás, o tema poderia ter sido dedicado especialmente a ela. Mal ela sabia que, num futuro próximo, aquelas imagens viriam a transformar-se num material de pesquisa, essencial ao arquivo da sua memória.

Os seus pensamentos irromperam novamente, desta vez mais amargos, sem que os conseguisse dominar:

Resumindo, agora estou metida num bom sarilho. A chatice é que esta é uma daquelas situações das quais não posso fugir, nem mesmo deixar que me passe ao lado, como quem não quer a coisa. Um filho é, supostamente, para nós, mães, acompanharmos e aturarmos a maior parte das nossas vidas, enquanto ele nos deixar, claro está!

Isto de ser mãe tão a despropósito nem seria muito terrível se não fosse o clima lá por casa. Essa é que é a verdadeira tristeza da minha história: a existência, sob o mesmo tecto, das duas pestes “adoráveis”, filhas do Marcelino e da ex-galdéria com quem ele teve um caso fugaz aos 24 anos. O raio das miúdas devem mesmo sair à mãezinha: caprichosas, egoístas e mal-educadas. Isto para não falar na mania das grandezas e das belezuras. Ambas estão convencidas que nasceram para serem “Cindys”. E para tornar as coisas ainda piores: gémeas, iguaizinhas como duas gotas de água. Não tivessem nascido agarradinhas pelo dedo mindinho. É exasperante, nunca sei bem com qual delas estou a falar, ou melhor a monologar, já que fazem sempre que não ouvem.

Isto não está nada fácil: madrasta detestada pelas duas e, como se já não me bastasse, a partir de hoje, ainda vou ter de me preocupar, permanentemente, com este miúdo, ou miúda: limpar-lhe a ranhoca do nariz, mudar-lhe as fraldas, e tudo o resto que é suposto uma mãe
fazer.

Maria Adelaide tentava, em vão, não se auto-deprimir em demasia ao pensar na sua vida e no Marcelino. Além de ser um marido que não servia de ajuda para nada, (só para lhe dar mais trabalho, nem que fosse a queimar a memória quando pensava mal dele), ainda achava ser um dos direitos óbvios de qualquer macho que se prezasse possuir um espaço privilegiado neste mundo. Para tal, bastava ter nascido com uma pila entre as pernas. Na sua opinião, o mundo sempre pertencera aos homens e continuava a pertencer-lhes, o que não deixava de ser curioso, já que era, praticamente, só a sua mulher que tomava conta do negócio de família. Ele limitava-se a aparecer, para verificar, tostão a tostão, as contas e a desaparecer, logo de seguida, satisfeito por ter mais dinheiro para estoirar com as suas amantes. E de preferência com a ajuda dos amigos e das mulheres que o rodeavam.

Excluindo o facto da situação, só por si, ser algo desagradável, e consideravelmente dolorosa, a verdade é que enquanto esteve ali aos ais, discreta, instalada na desconfortável posição de pernas abertas, teve tempo para pensar, repensar e divagar sobre a sua sina:

Para tudo acabar em beleza, só me falta mesmo o puto sair mulato, de cabelos encarapinhados ou de olhos pretos. Se isso acontecer é que o caldo vai ficar, certamente, entornado.

Numa eventualidade daquelas, até o distraído do Marcelino iria desconfiar. Em caso de dúvida, se já tivesse esquecido de como era, bastava-lhe consultar um espelho, para verificar que o seu reflexo devolvia-lhe um homem de pele clara, quase deslavada, olhos bem azuis, tal como os de Maria Adelaide, e cabelos escorridos, também claros, quase loiro platinado. Isto, não considerando as entradas que iam avançando, sem dó nem piedade, para a calvice. Os anos iam passando, impiedosos. Embora a realidade lhe devolvesse uma imagem de homem adulto, já bem maduro, o Marcelino continuava a levar a sua vidinha como sempre: flauteando e divertindo-se, sem se coibir de nada. Gastava tudo o que tinha consigo próprio, sem se preocupar com mais ninguém. A sua noção de família era, no mínimo, peculiar: existia porque tinha de existir, como uma instituição. A sua função era estar em casa, tipo porto de abrigo, para o que desse e viesse. Um ponto fixo de partida e de chegada. Nada de muito dramático nem complicado, já que nem lhe passava pela cabeça que a podia perder.

Apesar de todas as suas faltas de atenção e de presença física, Maria Adelaide não conseguia libertar-se daquele homem, havia qualquer coisa nele que, desde sempre, a deixava suspensa e dependente.

E pensar que ele, em tempos, foi considerado o maior garanhão do bairro... Ainda me lembro quando o conheci: um portento de macho apetecível. Não descansei enquanto não encontrei a Maria Luísa para lhe confidenciar que tinha encontrado o homem com quem queria casar. Só nunca pensei que ele também estivesse interessado em mim: eu não passava de uma miúda muito tímida e inexperiente. Mal sabia eu o putanheiro em que ele se ia transformar, à conta dos exemplos maravilhosos do pai, com certeza. Só me custa compreender como é que se foi tornar idêntico ao progenitor? Sobretudo, tendo assistido a cenas vergonhosas, de maus tratos, físicos e morais, sofridos pela sua mãe. Se eu fosse esperta tinha era ficado quietinha no meu lugar. A mão da minha mãe bem me avisou com as frequentes estaladas que me deu.

E aqui estou eu nesta vergonhosa realidade: sempre gostava de poder confirmar qual dos dois é pai do meu filho. Não é por nada, até porque em relação a ambos, venha o diabo e escolha... Sempre tive olho para os homens, sim, senhor! Coitada da minha mãe se fosse viva. E coitada de mim que era bem capaz de levar uma tareia daquelas.

O que mais a incomodava e roia naquele momento era ter de admitir a si própria que não tinha a certeza de quem era o pai genético do miúdo: se o Marcelino, ou o Camilo. Mas, no meio daquela história toda, o mais preocupante era o facto, por demais evidente, do Camilo ser mulato. Pensando bem, o marido acabava por ser o progenitor menos provável, nunca estava em casa e, quando estava, a figura não era das mais animadoras ou atraentes: barba de dois dias, cabelos emaranhados...

Felizmente, e a acreditar no que diziam as revistas que costumava ler quando ia ao cabeleireiro lá do bairro: os bebés saíam sempre com a pele clara, só com o tempo é que a pele ia escurecendo. Mesmo assim, a Maria Adelaide maldizia-se pela sua estupidez e imoralidade. Começava a sentir necessidade de se confessar, mas tinha vergonha do padre. O homem já a conhecia desde miúda. No mínimo, ia ficar chocado.

Moída ou não pelo arrependimento, tenho a certeza de, pelo menos, duas coisas: primeiro o bébé vai nascer e segundo, o Marcelino é que tem de assinar o registo da criança, dê por onde der. O que é que dirão os meus sogros se tiverem um neto mulato? Credo! Nem quero pensar. Estaria perdida. Se eles agora já não me gramam, imagino o que seria descobrirem que a mulher do filho o tinha enganado e, ainda por cima, com um mulato. O resultado seria catastrófico: a miséria moral. Isto para não pensar no pobre do padre Vitorino. Felizmente, os padres não conseguem ler os pensamentos, se o fizessem dava-lhes uma coisa má. Havia de arranjar maneira para nunca mais me deixar sair de casa se não para ir à igreja rezar e pedir perdão a Deus pela minha cabeça pecaminosa. E isto não advinhando o desprezo social a que, com certeza, ficaria votada pelos santos pecadores que me rodeiam. Meu Deus, por favor, não me castigues de forma tão dura. Tenho plena consciência de que pequei e se o arrependimento matasse, já tinha caído fulminada... Eu sei que, mais tarde ou mais cedo, vou pagar por esta folha conspurcada do diário da minha conduta cá na Terra. É a chamada justiça divina, e dela nunca me livrei, bem pelo contrário: às vezes parece que o castigo que sofro é bem mais pesado do que o pecado cometido. O mais estranho e desesperante neste meu mundo, é sentir que os que me rodeiam, e têm atitudes francamente esgoístas e cruéis, nunca pagam pelas suas maldades. Devem ser protegidos por um diabrete maligno qualquer... Sorte a deles.

Maria Adelaide estava à beira de uma crise de pânico. Os seus pensamentos começavam a perder qualquer réstia de racionalidade. Tentou orientar a sua cabeça para assuntos menos intelectualizados. Esforço que se revelou inútil, pois não conseguiu abstrair-se da dura e crua realidade. Na esperança de se distrair com uma futilidade, recordou as aulas de ginática pré-parto onde sempre se sentira consideravelmente ridícula e experimentou pôr em prática a respiração, um pouco obscena, e sobretudo muito hilariante, que lhe tinham ensinado. O importante era conseguir, a todo o custo, fazer abrandar aquelas dores horrorosas que teimavam em colar-se-lhe à barriga e aos rins, nem que para isso se tivesse de sentir a mulher mais ridícula ao cimo da Terra. Concentrou-se na respiração e, aos poucos, lá foi conseguindo obter alguns resultados satisfatórios.

Quando se sentiu capaz de usufruir do ligeiro abrandamento das dores terríveis, decidiu tentar entreter a imaginação com algo de mais substancial. Não muito inteligentemente, optou por voltar a pensar no marido. Embora o tema não fosse brilhante, nem sequer animador ou consolador, parecia ter o condão de a distrair de si própria. À medida que as frustrações conjugais ganhavam terreno dentro da sua mente, foi conseguindo esquecer-se dos preparos desconfortáveis em que se encontrava e do que a esperava nos minutos e horas seguintes.

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