Saturday, March 17, 2007

Lisboa

andei aos solavancos pelas ruas de Lisboa à procura de um amigo, um daqueles amigos que me batesse nas costas, me chamasse "meu velho" e me falasse dos filhos, do emprego, dissesse brejeirices às mulheres que passam. nem um. então pensei em vir visitar-te, porque queria ouvir contar uma história que me trouxesse de volta o sentimento de pertencer às recordações de alguém. começaria assim a história. esta noite, como o sono chegasse dificilmente, tentaste encontrar, entre os nomes evocados pela memória, um que fosse particularmente grato, de modo a coseguires adormecer com um sorriso nos lábios. a memória falhou-te, e tu adormeceste pobre, como pobre fora a tua vida. como pretendes legar o conhecimento da tua experiência, exortando que se busque no amor um refúgio que nunca nos é negado, decides-te a descrever num conto, na primeira pessoa, o teu caso pessoal e esta desencorajante sensação de quem para sempre ficou só. nesta história há um tipo miserável, andrajoso, esfaimado, e com que severidade ele expõe os seus pontos de vista; eu não posso deixar de rir, porque ao fim e ao cabo, até é ridículo ouvir um criançola, sem experiência em nenhum campo, a dizer as coisas, a torná-las feias e tristes e pesadas e inúteis. mas a verdade é que gosto de ouvir-te falar da minha solidão, que não é de ouro nem de pedras preciosas, porque não pode ser tão horrível, nem tão mesquinhamente ostentosa; e do silêncio das coisas que se contentam em existir e aos poucos apodrecem. ouvir-te falar do vagabundo é como se eu me observasse fora de mim, a tornar-me gradualmente a imagem que me apraz contemplar. foste tu que me apresentou a esta imagem, uma forma diplomática de me indicares o teu cansaço. até que um dia decidamos em perfeito acordo que as nossas aventuras passadas nada são perante a figura do amor...
o ponto de partida é, evidentemente, o essencial. de certo modo, o que eu verdadeiramente possuo é o ponto de partida. mas que importa tudo isto, se o destino é comum e a hora de chegada nada modificará? não alongo mais a história, decerto já se adivinha que não é possível dar-lhe um fim.

1 comment:

Anonymous said...

havia um amigo do passado à tua espera. talvez o único que percorreu uma cidade inteira para te encontrar debaixo de chuva numa república que matava a fome. um amigo que dava tudo para tirar-te as dores. ainda te lembras de mim?